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Artigo de Opinião

Dois pastéis de nata e colonialismo para viagem

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Minha vida inteira estudei em escola católica. Meus pais, terrivelmente agnósticos, acreditavam que aquele era o melhor tipo de ensino que eu poderia ter em um país em desenvolvimento como o nosso Brasil. Acostumei-me, portanto, a rezar o Pai Nosso e a Avé Maria após o hino nacional, e a decorar o dia do nosso santo padroeiro, porque nesses dias ganhávamos lanches especiais da escola. Foi uma experiência interessante, pode-se dizer. Edificante, até mesmo. Aprendi muitas coisas no ambiente espiritual do colégio, nomeadamente a diferença entre católicos, judeus e evangélicos e como se lê a Bíblia. E foi lendo a Bíblia que parei de acreditar em Deus. Edificante, como já referi. De facto, uma grande experiência.

Devo ressaltar que eu não estudava em uma escola católica qualquer. Estudava em um colégio Jesuíta. Jesuíta, com J maiúsculo. Ordem da Companhia de Jesus, ad maiorem dei gloriam, fundada em 1534 e liderada por Íñigo López de Loyola; foi e é uma vertente educadora e missionária da Igreja. Amém.

De fato, minha educação sempre foi de alta qualidade. Não tenho nada a reclamar quanto aos meus conhecimentos de cálculo ou química orgânica. Talvez tenha passado demasiado tempo estudando Santo Agostinho e São Tomás de Aquino em filosofia. Mas, por fim, o que me ensinaram foi o bastante para que eu alcançasse excelentes notas no Exame Nacional de Ensino Médio, entrasse para as maiores e melhores universidades do Brasil e renegasse minha pátria ao emigrar para Portugal. Bom colégio, deveras, meu irmão ainda lá estuda. Tenho saudades dos professores.

Contudo, devo admitir que foi uma intrigante experiência ouvir os próprios jesuítas darem aulas de história da colonização brasileira e falar sobre os jesuítas do passado. Com todo o respeito aos padres, alegrava-me a escola ser minimamente laica e não empregar párocos como professores de história. Podia, assim, exercer meu fogo revolucionariamente adolescente que ansiava pelo caos da mudança plena em sala de aula. Em medidas homeopáticas, claro.

Mas, de facto, era eu uma aluna insuportável, com minha mão sempre pairando em direção ao teto, intervindo com perguntas ácidas e comentários que acreditava serem extremamente eruditos, incentivando a controvérsia e o debate. Os professores de ciências sociais amavam-me. Pequena vanguardista radical era eu, eles diziam. O mesmo não posso dizer sobre meus professores de religião. Era insuportável. Jamais assumi a palavra deles como verdade.

Mas não pode.

Por que não pode?

É a palavra de Deus, não pode.

Mas quem disse que não pode?

A Bíblia disse que não pode.

Mas por que é que a Bíblia diz que não pode?

Porque não pode.

Mas por quê?

Só não pode.

E por que devo eu seguir essa parte da Bíblia se em outras…?

Era assim. Nunca saí da fase dos porquês. Nunca aceitei argumentos de autoridade. Meus professores eram pacientes com as minhas insistências – até certo limite. Quando falávamos sobre os Jesuítas, então, as chamas da minha sede incansável por mudança fazia a sala arder. Isso porque o colégio criava uma certa incoerência entre as classes. Aprendíamos sobre o genocídio indígena nas aulas de história, sobre os males da maldita colonização, sobre o sangue derramado dos nossos compatriotas. Como nossa população teve que fugir para o interior para não se tornarem corpos a serem largados na sarjeta, ou escravizados, estuprados, explorados. Ou, alternativamente, se converter à Igreja católica e se juntar aos Jesuítas nos seus latifúndios manufatureiros, dando, assim, como única alternativa ao genocídio – o genocídio cultural. Aprendi como a Igreja e o papa deliberaram que o negro não tinha alma e, por isso, merecia ser escravizado. Como a própria Igreja tinha latifúndios nas colónias que usavam mão de obra escrava. Como todo o nosso passado é sangue, sangue e dor – exploração. E, enquanto isso, na aula de religião, o beato professor tentava me convencer da importância pacífica dos Jesuítas em terras brasileiras, da beleza da história de Santo Inácio e sobre como não era tarde para eu procurar fazer a primeira eucaristia.

Tinha o sangue da indignação fervendo dentro de mim. Palavras abençoadas soavam-me apenas como prece de um revisionismo histórico.

O tempo passou, porém. Não tenho mais aulas de teologia, tampouco das demais matérias do Ensino Médio. Já não me encontro no litoral de Pindorama e o calor que passo é somente nos meses de julho e agosto. Não rezo mais o Pai Nosso, menos ainda entoo o hino nacional. Mas ainda guardo comigo o que aprendi, seja pelas aulas ou pela experiência, no colégio católico. Continuo sendo aquela jovenzinha revolucionária, sedenta pelo saber e cheia de porquês. Mas agora, com vinte anos, passaporte marcado e um currículo aceitável, à procura de estágios.

Dessa forma, é clara a deceção que tive ao chegar a Portugal. Na minha cabeça de criança, a ordem eram meus professores críticos de história e o pária era o sacerdote que me dava aulas de conversão espiritual. Para mim, o mundo, mesmo que católico, era consciente dos males do seu passado. Eu achava – tola- que as pessoas sabiam que o holocausto não foi o único genocídio de nossa história mundial; que a Europa tem as mãos sujas de sangue e que o Estado de bem-estar social da União Europeia se baseia em séculos de exploração do Sul Global.

Achava que assim como me envergonho dos feitos do Brasil Império, que tentou com vergonha e timidez, avançar contra a América Latina em seu delírio imperialista; compadeço-me dos Paraguaios e me envergonho de ser o futuro do passado que os dizimou; assim como eu sei dos pecados que correm no meu sangue por causa da minha pele branca; assim como eu tenho uma consciência crítica do que veio antes, achava que os outros também teriam. Tola. Ingénua.

Cheguei em terras portuguesas com o guia turístico dizendo que o McDonald’s mais bonito no mundo era aquele que tinha um vitral escravocrata em seu fundo. Passei por diversos cafés que faziam apologia à escravidão e à colonização até me dar conta que meus novos vizinhos não sabiam o que eram senzalas – senzalas que eles mesmo construíram. Percebi que o outro lado do Atlântico vivia em revisionismo histórico, onde não teve Grandes Navegações e, sim, Grandes Descobrimentos, onde o colonialismo foi bom, a Europa não tinha culpa das desigualdades do mundo, Salazar era enaltecido e racismo era coisa de americano.

Percebi, portanto, que não era apenas o padre jesuíta que me dava aulas de teologia, que fazia o contorcionismo educacional para colocar a si mesmo no lado certo da história e apagar seus erros. Foi um choque para o meu juvenil coração vagabundo.

E o choque continua ao perceber a falta de conhecimento de meus colegas lusitanos no que se refere aos males que sua pátria causou. E a recusa, também, em percebê-lo. Devolva, sim, meu ouro – meu ouro e o ouro de todas as colónias que financiou a magnificência das igrejas. Porque o passado pode ser só páginas velhas para quem lucrou do sangue, mas é a desigualdade de quem hoje passa fome.

Enfim, perdi-me em meus pensamentos subversivos. Só anseio por um pedido de desculpas daquele professor que quis me ensinar que os jesuítas ajudavam os indígenas ao forçá-los à catequese. E mudança.

Sempre hei de ansiar por mudanças.

 

Artigo da autoria de Débora Magalhães Binatti

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