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Opinião

Do Haiti para os EUA

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Rápido e eficaz – a dupla perfeita. A combinação ideal que muitos tentam atingir, mas poucos conseguem. A perfeição não é fácil, nunca foi, e há mesmo quem defenda que é humanamente impossível. Obrigados a escolher, mais vale optar pelo eficaz. O eficaz trará os melhores resultados a longo prazo e o adjetivo em si é sempre positivo. Já o rápido é outra história…O rápido pode ser bom ou mau! Varia de acordo com a circunstância e, por isso, é preciso ter cautela! O verdadeiro problema da rapidez é que, aliada à falta de paciência, dá, inúmeras vezes, mau resultado.

Por mais absurdo que pareça, é este imediatismo que parece ser a origem de tantos problemas no mundo: querer tudo e querer agora. Dinheiro agora, poder agora. Agora! Cuidado com o agora!

Nesta última semana, o presidente Biden só soube dizer “agora” e, talvez tenha sido essa ânsia de resolver, e resolver rápido, o motivo de tantas decisões que deveriam ter esperado, e de tantas outras que deveriam ter avançado e nada!

Mas comecemos pelo início e pelo que parece ser o mais importante: a primeira coisa que o senhor presidente quer que se saiba é que é completamente diferente do seu antecessor. O mundo deve ver em Biden o total oposto de Trump. Isso é crucial. Mas o que acontece quando metade da América vira as costas a Biden por lealdade a Trump? Nasce uma sociedade profundamente refratada e dividida que compete a Biden unir. Contudo, a querer agradar a gregos e a troianos, não se agrada nem a uns nem a outros, especialmente quando o objetivo é fazê-lo “rápido”.

Em menos de uma semana, o governo dos Estados Unidos foi capaz de recusar a entrada de cerca de duas mil pessoas, devolvendo-as ao Haiti. Para alguns, tratam-se de emigrantes ilegais, mas a realidade, infelizmente, não é assim tão simples. São refugiados.

Considerado um dos países mais pobres do mundo pela permanente incerteza económica, social e política que há tantos anos se tem vindo a agravar, o Haiti vai sendo esquecido pelo mundo. Os problemas estão lá há muito, ainda assim foi preciso mais um terramoto, o assassínio do presidente e uma migração em massa, para nos recordarmos deste país e para Biden abordar o clima que sufoca a América Central. E como foi essa abordagem? Digamos que rápida.

Durante esta última semana, não deixámos de ouvir e ler a expressão “o mais rapidamente possível” em televisões, jornais e rádios. O problema foi, de facto, tratado “o mais rapidamente possível”, mas faltou ponderação! A primeira questão que me surge é muito sucinta, simples até, tão simples que me custa compreender como é que pode ser o foco do meu texto: porquê deportar estas pessoas? Porquê enviá-las para as condições desumanas das quais fugiram? Para um país que não é capaz de lhes garantir a mais básica das necessidades, a segurança? Porquê negar-lhes refúgio? Creio que o cerne do problema se centra no facto de esta ser mais do que uma decisão política, uma decisão moral.

Até ao fim de setembro, é estimado que sejam admitidos cerca de 65000 refugiados afegãos e mais 30000 até ao próximo ano. Tal como os afegãos, também os haitianos estão sob uma inegável ameaça, sem verem os mais básicos dos seus direitos humanos garantidos. A violência é uma constante diária e o som de tiroteios é mais comum que o silêncio.

No entanto, Biden optou por pôr sobre os seus ombros a decisão de definir quem teria direito à sua ajuda e aos seus recursos. Porém, neste jogo de interesses, uma importante regra foi quebrada: os direitos humanos não têm reservas, são de todos e para todos. O Afeganistão está sob o olhar atento dos observadores internacionais. O Haiti passa despercebido … Negar refugiados afegãos seria um grande passo para trás na tentativa forçada de Biden se distanciar de Trump. E não esqueçamos a polémica que já rodeava os Estados Unidos e o Afeganistão! Depois de uma retirada abrupta, considerada por muitos precoce, assombra Biden uma responsabilidade para com o povo afegão, que se viu abandonado a um governo incapaz de o proteger. E essa responsabilidade sobrepôs-se ao profundo sentimento anti-imigrante que ainda hoje domina a América. O Haiti não teve a mesma resposta. Para os haitianos o muro que Trump construiu mantém-se erguido. O que os Estados Unidos tardam em recordar é que também para com o Haiti têm uma responsabilidade.

Assumir a presidência de uma nação é assumir também a sua história, carregar as suas vitórias e os seus erros. Todavia Biden parece ter-se esquecido disso, ter-se esquecido de que as pessoas que lhe pedem ajuda são as pessoas vitimizadas pela mesma América que governa. Foram os EUA que, durante anos manipularam as políticas haitianas a seu favor. Desde negarem o reconhecimento do Haiti enquanto país independente, à ocupação de 20 anos do mesmo, até ao ativo e permanente apoio dado ao governo ditatorial de Duvalier, cujas violentas consequências no povo haitiano os Estados Unidos ignoraram, em prol dos seus interesses num Haiti anti-comunista.

A dívida externa do Haiti aos Estados Unidos estima-se, atualmente, em cerca de 1,3 biliões de dólares, sendo que aproximadamente 40% da mesma tem origem no governo ditatorial que os próprios EUA forçaram no Haiti. É uma dívida que os haitianos não deveriam carregar porque não é deles, não lhes pertence porque parte de um governo que não elegeram e que, por isso, de certa forma, também não lhes pertence.

Agora as feridas que os EUA ajudaram a abrir estão mais profundas e será impossível para os haitianos curá-las sozinhos. Se não pelas mais básicas razões humanas que deveriam impelir Biden a não deportar pessoas que imploram pela sua ajuda, que seja pela responsabilidade histórica que se impõe e que parece levar os Estados Unidos a aceitarem os refugiados afegãos.

Biden, claro, não deixou passar sem comentar os vídeos virais onde era possível ver a polícia do seu próprio país a maltratar um grupo de haitianos. Foi-nos dada a certeza que os responsáveis pagariam. No entanto, se o objetivo é efetivamente mostrar o seu apoio para com as pessoas que fogem de um país no qual vêm os seus direitos negados, então a solução não é apenas o castigo, mas incutir e alimentar uma nova mentalidade que o distancie definitivamente da política do seu antecessor. Eliminar o título 42 seria um passo óbvio, mas não suficiente. As condições nas quais, durante vários dias, viveram as famílias haitianas refletem também a posição do país perante os imigrantes. Ao procurarem refúgio nos Estados Unidos, os haitianos deveriam automaticamente ver respondidos os seus direitos básicos à alimentação, segurança, saneamento e água.

É costume ser nesta fase do argumento que entram personagens como o Secretário do Departamento de Segurança Interna dos EUA, Alejandro Mayorkas, com a sua célebre frase “Se vieres para os Estados Unidos ilegalmente, serás deportado. A tua viagem não será bem-sucedida, e estarás a pôr em perigo a tua vida e a da tua família”. Ora, para o senhor Secretário levanto uma questão apenas: em que condições imagina que estão as pessoas no Haiti para acharem que vale a pena arriscarem a sua vida para irem até ao seu país? E ao senhor presidente dou os meus parabéns, já que conseguiu cumprir a sua promessa “rapidamente”. Peço apenas que reconsidere a importância que dá a esse “rápido” e ao “eficaz” que falhou em estar presente!

Artigo da autoria de Rita Matos