Devaneios
Forcas e guilhotinas
O som dos ferros mal oleados confunde-se com a miscelânea melódica de idiomas que nos enchem os ouvidos. Cheira a suor, cansaço e ambição. O menino de camisa vermelha aos quadrados, cujas pálpebras fechadas são barreira entre este mundo e o seu, contrasta com o grupo de forasteiros onde se vão soltando gargalhadas espontâneas, mas comedidas.
Quando o embalo apressado, áspero e, para alguns, displicente termina, abrem e fecham as guilhotinas. O azul e o vermelho garridos gritam nas paredes e nos bancos de outro tempo, com alguma arrogância que peca até por excesso.
Do teto, crescem forcas, como se de rosas num canteiro se tratassem. Num cinzento austero que reluz, alinhadas com um espaçamento cujo acerto intimida. Pelo que percebi, há quem nelas se segure para não tombar. Irónico, e arrojado até. Como estaria o inventor da forca se soubesse?! Matar-se-ia, por certo. Nem que fosse apenas para efeitos de demonstração da utilização do produto!
Há linhas coloridas, tal como as pessoas. Invadiu agora o meu campo de visão um senhor que se parece mais com Marcelo Rebelo de Sousa do que o próprio. Agora virou-se. Correção: idêntico a um professor Marcelo se à pessoa retirassem os livros e a vitalidade. E se acrescentassem barba. E cabelo. Um Marcelo mais desleixado, vá.
As superfícies são duras, gastas. Deslizo do banco, nem que não queira. Ouço uma campainha, abre-se a guilhotina. Enquanto não fecha, cheira a liberdade. E a chichi. Cheira muito a chichi.
Artigo da autoria de Inês Araújo Silva