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Artigo de Opinião

Sociedade de fome e de startups

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Talvez se recordem daqueles tempos idos em que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, se assomava às televisões, fazendo uso do moralismo que lhe é familiar, por causa da questão incessante dos sem abrigo. Eu recordo-me vagamente de tais aparições demasiado natalícias, porque calha sempre bem fazer a parte que lhe compete de bom chefe de Estado: zelar pelo bem dos pobres, porque o dos ricos é assunto para o resto do ano.

Dessas miragens, agora frutos de uma memória orgulhosamente elástica, restam, cá na minha modesta opinião, vestígios do fetichismo de um país abastado, sem mãos pedintes em cada esquina lisboeta ou portuense, e plenamente integrado na civilização de betão que todos nós sustentamos. Tal ideia parece descabida, não só pela sua originalidade arriscada, mas também pela sua potencial ameaça a esta civilização de betão, onde há casas vazias e pessoas a viver na rua. Uma civilização cujo ordenamento jurídico não prevê que se ocupe o espaço público, excetuando, claro, os bancos das ruas iluminadas pelas ostensivas montras da Avenida da Liberdade.

O problema não é difícil de adivinhar. Aliás, adivinhar parece-me um termo um tanto ofensivo, visto que ele está à vista de toda a gente; nós é que nos esquecemos com facilidade das tragédias quando elas acontecem noutra morada que não a nossa. O problema é a fome. São as vidas que se definham num estado de miséria. São as televisões que aparecem nos pavilhões a registar a caridade precária da quadra. São homens, mulheres e crianças que, abandonados pelo patriotismo cínico do seu Estado, fazem fila no Saldanha e no Rossio à espera de uma sopa e um bocado de pão.

Mas este é o mesmo Portugal que recebe o maior evento tecnológico do mundo, a Web Summit. É também o Portugal das start-ups, do investimento estrangeiro, da Fábrica do Unicórnio… Ou será este mais um ideário poluído e profundamente afastado da realidade penosa em que vivem milhares de cidadãos e cidadãs em Portugal? Parece que sim.

Paddy Cosgrove, co-fundador da Web Summit, diz que “Pelo menos na próxima década, Lisboa vai ser o lugar para estar“. Acredito que sim. Aliando esta ambição puramente ligada aos desafios económicos do grande capital à centralização global efetivada pelos políticos portugueses, é mais que normal a procura por Lisboa, sobretudo para quem esteja financeiramente confortável. E antes de ser interpretada como forte opositora da instalação de empresas geradoras de emprego numa cidade (e no mundo, pelo menos antes de serem resolvidos problemas estruturais relacionados com o princípio mais básico, a dignidade humana) onde já há empresas suficientes, deixem-me esclarecer o seguinte: a obsessão por Lisboa é velha. A obsessão pela evolução tecnológica também.

Em tempos de crise, como a que vivemos agora, nos diversos planos que constituem aquilo a que chamamos sociedade, importa refletir sobre o carácter urgente do Estado social. É através dele que valores importantes se consolidam para, posteriormente, servirem de guia a outras gerações. Convém pensá-lo como uma valência insubstituível que não condene ao esquecimento mais um dos inúmeros problemas sociais que está por resolver.

Parece cada vez mais que o importante para a classe política é a ostentação de um aparente sentimento de dever para com a população que sofre desta infelicidade, mas, na prática, não existem medidas concretas para solucionar o problema. Andamos às voltas com estatísticas e dados do INE sobre o número de sem abrigo num determinado período de tempo, mas isso não resolve nada. É preciso agir, porque há quem não tenha casa para fazer quarentena ou para simplesmente viver.

Artigo da autoria de Patrícia Freitas


 

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