Artigo de Opinião
Britney Spears sofreu o ponto máximo do patriarcado
Nos últimos 13 anos, muitos aspetos da vida da superestrela Britney Spears foram controlados pelo seu pai. A cantora, que faz 40 anos a 2 de dezembro de 2021, esteve entre os 26 e os 39 anos sob uma guarda legal que os americanos designam por conservatorship, que lhe tirou o poder sobre as suas finanças e mesmo a sua própria vida privada, transpondo-o para o seu pai.
Conservatorship é um processo legal que retira de alguém a capacidade de tomar as próprias decisões e a dá a um terceiro. É, portanto, um procedimento que só deve ser aplicado em casos extremos, como demência. No caso da Britney, a tutela (tradução de conservatorship) foi declarada em 2008, depois da artista ter sofrido uma crise de saúde mental em público, e envolveu controlo sobre as suas finanças, decisões em relação à sua carreira, questões pessoais, tais como as visitas dos seus filhos, e mesmo poder casar ou engravidar.
Resumidamente, uma mulher alcança o estrelato aos 16 anos, alcançando o topo dos charts por todo o mundo com o seu single de estreia, ‘Baby One More Time’, depois de uma infância já a trabalhar na indústria do entretenimento no The Mickey Mouse Club. Revoluciona a indústria musical ao reavivar o teen pop nos anos 90 e influenciando gerações futuras de artistas. Torna-se um fenómeno mundial, sendo que ainda hoje o seu primeiro álbum é o álbum mais vendido de um artista solo adolescente, para aos 26 anos estar dependente de um homem que controla quem é que ela pode ver e a fortuna que ela fez, como se fosse uma criança. Britney Spears sofreu o ponto máximo do patriarcado.
Do fenómeno ao sexismo e perseguição dos media
A Britney tornou-se um fenómeno no início dos anos 2000. E rapidamente apareceram aqueles que se quiseram aproveitar dela, humilhá-la ou desvalorizá-la. Foi acusada de ser “demasiado sexy, demasiado cedo” (capa da People de 14 de fevereiro de 2000), apesar de já ser maior de idade. Foi socialmente considerada culpada pela relação com o Justin não ter terminado bem. Foi dada como doente mental crónica por um médico, Dr. Drew, na televisão a especular sobre a sua saúde, sem nunca ter tido contacto com a mesma.
Foi questionada por um jornalista holandês, Ivo Niehe, sobre os seus seios, aos 17 anos. “Toda a gente está a falar sobre isso” diz o entrevistador – “os teus seios”. A jovem Britney ri-se por educação num momento de desconforto, que o próprio apresentador sabia que estava a causar, pois de seguida continua “Tu pareces ficar furiosa quando um apresentador de talk-show te fala do assunto”. Bem, se sabes que ela não gosta de falar do assunto, que tal questionar uma jovem menor sobre outros temas que não sejam sexuais, como o seu trabalho que estava a ser um sucesso? A Britney manteve a postura. Quando questionada sobre implantes mamários, respondeu que achava que toda a gente tem o direito de fazer o que quisesse com o seu corpo, no entanto, nunca tinha feito. A Britney manteve a postura nesta e em inúmeras outras ocasiões, porém, como qualquer ser humano, chegou a um limiar em que deixou de conseguir.
A entrevista de Diane Sawyer a Britney Spears em 2003, no programa Primetime da ABC é tão sexista que podemos dizer que resume um pouco de tudo o que a cantora teve de ouvir à medida que se foi tornando um fenómeno enquanto também passava de menina a mulher. Apesar de ser também mulher, Sawyer incorpora a misoginia no seu pior. A entrevistadora pergunta-lhe em tom acusador, segurando fotografias sexy da cantora “De que é que isto se trata?”, colocando toda a responsabilidade da sua sexualização em cima da jovem.
Nessa entrevista em que Spears queria promover o seu quarto álbum, In The Zone, a conversa focou-se na sua vida pessoal, com tendência a humilhá-la em todos os temas. Em relação ao break up com o Justin Timberlake, a apresentadora contextualiza que o cantor está de coração partido e questiona “O que fizeste?”, deixando a hipótese única de que Spears foi a culpada do relacionamento ter acabado.
Nessa altura, Kendall Ehrlich, esposa do governador de Maryland Robert Ehrlich, havia proferido que “se pudesse disparar contra a Britney Spears, o faria”. Sawyer aborda a violenta declaração com a artista para, no fundo, justificar as palavras injustificáveis de uma mulher adulta com um cargo político que fala em assassinar uma jovem “por causa do exemplo para as crianças e o quanto difícil é ser pai e manter isto tudo fora do alcance dos filhos”. O público assistiu a isto, mas não se indignou o suficiente. Britney manteve a postura, apesar de desatar a chorar em direto. Manteve a postura, mas até quando?
As perseguições dos paparazzi eram abusivas. Seguiam-na quando ia a quartos de banho públicos. Até uma foto do seu penso higiénico publicaram… em nome de noticiar que não estava grávida. Não havia limites em relação à vida e à intimidade da Britney. E durante todos esses anos não houve ninguém que percebesse o quanto isso estava errado. “Ela é louca” diz um paparazzi enquanto persegue o carro da Britney e a faz acelerar para fugir…
Britney Spears foi a celebridade que mais sofreu nas mãos dos paparazzi, a par da princesa Diana. Fizeram à Britney o que jamais se faria a uma celebridade hoje em dia. E ainda bem que isso mudou. Mas, na altura, a Britney foi claramente vítima dos abusos da comunicação social e não é de admirar que isso a tenha afetado mentalmente.
Depois de toda essa jornada de humilhação pública e de ser conduzida à loucura, ainda tem de pagar por isso ao ser dada como incapaz? É demais.
O ano de 2007
O ano de 2007 foi caótico para a princesa da pop, depois de se ter divorciado de Kevin Federline, com quem esteve casada durante três anos, e de perder para ele a custódia dos seus filhos, Sean Preston e Jayden. Seguiu-se uma série de incidentes que atormentaram o ano de Britney e todos eles foram captados por flashes esfomeados e globalmente divulgados, porque ela era o centro das atenções na altura e tragédia era o que mais vendia. Desde rapar o próprio cabelo em público, em Sherman Oaks, Califórnia, a atacar o carro de um paparazzi com um guarda-chuva, ter um acidente de carro e fugir por não ter carta de condução do estado da Califórnia, Britney perdeu o equilíbrio em frente ao mundo inteiro. Fez muitas capas e foi o saco de boxe dos media. Um episódio de Family Feud, um concurso televisivo americano com questões que colocam duas famílias em disputa, saiu durante o período de crise de Britney com o tópico “Nomeia coisas que a Britney Spears perdeu no último ano”. Os concorrentes davam respostas como “o marido”, “o cabelo”, “a sanidade”, entre aplausos e risos, ignorando completamente o facto de Britney Spears ser primeiramente um ser humano e, como tal, este tipo de situações provocavam-lhe um sofrimento imensurável.
Nos VMAs de 2007, Britney atuou o seu novo single ‘Gimme More’ numa tentativa de comeback mas a atuação não correu bem, devido a todo o caos instalado na sua vida. Sarah Silverman, apresentadora da cerimónia, humilhou a cantora nessa mesma noite, dizendo “Ela é incrível. Ela tem 25 anos e já alcançou tudo o que vai alcançar na sua vida”. Não foi assim há tanto tempo, mas foram tempos em que qualquer um podia ridicularizar o outro sem qualquer empatia pela sua dor e, para além de não ser repreendido, ainda era aplaudido por isso.
A Britney foi um entretenimento sádico para uma sociedade doente.
Depois de internamentos em hospitais e clínicas de reabilitação, o ano de 2008 começou com Jamie Spears a pedir a um tribunal de Los Angeles que a filha fosse colocada numa tutela temporária, da qual ele fica encarregue, tendo poder sobre os seus bens e finanças, carreira e vida pessoal. A tutela, que era temporária, passou a ser por tempo indefinido.
Ela provou que está bem
Desde a criação da tutela em 2008, Brintey Spears lançou quatro álbuns (Circus, em 2008, Femme Fatale, em 2011, Britney Jean, em 2013 e Glory em 2016), fez tours para três deles, muitos concertos residenciais em Las Vegas e foi jurada do programa de talentos X Factor, em 2012. Como é que uma pessoa que não tem capacidade de tomar decisões básicas sobre a sua vida é capaz de tudo isto?
A 5 de março de 2008, um relatório médico para o tribunal relatava que “Britney Spears não tem capacidade para ter um advogado”, nem “capacidade de entender e gerir os seus assuntos financeiros sem estar sujeita a influência indevida”. Menos de 20 dias depois, a 24 de março, saiu o episódio Ten Sessions de How I Met Your Mother, no qual a cantora fez um cameo, e foi elogiada pela sua performance como atriz. Portanto, no mesmo espaço de tempo a Britney não tem capacidade para escolher um advogado, mas tem capacidade para trabalhar e fazer dinheiro para posteriormente ser gerido por outra pessoa?
A Britney Spears esteve num estado muito sombrio a nível psicológico e isso foi evidente para todo o mundo. Contudo, pelo que se sabe, não sofreu de demência ou esquizofrenia, ou alguma doença mental crónica. O que alguém precisa em momentos destes é de apoio e acompanhamento, não de uma convervatorship. Não precisa de todo de uma convervatorship que, responsabilizando-se pelas suas finanças e carreira, a force a regressar ao trabalho antes da recuperação emocional.
O negócio da família
As pessoas responsáveis pela tutela ganharam 3 milhões de dólares apenas no primeiro ano. Entretanto, Britney deu um apartamento de 2 milhões de dólares ao irmão, uma propriedade em Louisiana à mãe e ao pai o melhor emprego no show business: gestor de finanças de Britney Spears.
O seu irmão Bryan deu uma entrevista em 2020 onde se referiu múltiplas vezes à irmã como “the family business”. Chega mesmo a referir-se aos fãs da irmã como “nossos fãs”. A sua linguagem é perturbadora e desumanizadora. Com estas poucas palavras, mostrou o que a irmã significa para ele- a fonte de rendimento. E o cúmulo ainda está para vir: “As mulheres nesta família são muito obstinadas, têm a sua própria opinião e querem fazer o que querem. Por mais que eu admire isso, como homem, um dos dois homens desta família inteira, é meio que uma treta”.
O irmão fala mal dela e rebaixa-a como mulher enquanto está sentado numa cadeira luxuosa, na sua casa opulenta, adquirida com o dinheiro da irmã. E não sente vergonha, porque está a fazer o seu papel de silenciar as mulheres da sua família.
Por muitas asneiras que ela pudesse ter feito, ninguém tinha o direito de a controlar desta forma. Quantos cantores e atores de Hollywood não gastaram tudo em drogas? Ela, por ser mulher, tem de ser controlada?
O que aconteceu com a Britney é um reflexo da sociedade no seu pior.
Britney tentou gritar, mas ninguém a ouviu
A Britney tem quase 40 anos e perdeu a sua década dos 30 sem o mínimo de liberdades e independência. Não podia usar um cartão de crédito, não tinha direito a gerir o seu próprio dinheiro, não podia ver ninguém sem autorização, não podia casar, nem ter filhos (uma vez que tem um DIU implantado e não a deixam removê-lo).
A 23 de junho de 2021, a cantora-compositora, em comunicado à juíza do Tribunal Superior de Los Angeles, relatou vários abusos que tem sofrido por parte do pai e família. “Gostaria honestamente de processar a minha família, para ser totalmente honesta convosco. Também gostaria de poder partilhar a minha história com o mundo, e o que eles me fizeram, em vez de ser um segredo para os beneficiar a todos” desabafou a artista. “Considerando que a minha família vive à custa da minha tutela durante 13 anos, não ficaria surpreendida se um deles tiver algo a dizer daqui para frente e afirmar: ‘não achamos que isto deva acabar, temos que ajudá-la’. Especialmente se eu conseguir a minha oportunidade de expor o que eles fizeram comigo” continuou.
Entre os abusos denunciados, Spears disse que foi forçada a sair em tour, a tomar medicamentos que não queria e ser internada em serviços de reabilitação.
“Eu estava em digressão em 2018. Fui obrigada a fazê-la… O meu management disse que, se eu não fizesse esta digressão, teria de encontrar um advogado e, por contrato, o meu próprio management poderia processar-me se eu não prosseguisse com a digressão. Entregou-me uma folha de papel ao sair do palco em Las Vegas e disse que eu tinha de a assinar. Foi muito ameaçador e assustador. E com a tutela, nem sequer consegui arranjar o meu próprio advogado. Então, por medo, fui em frente e fiz a digressão” contou a artista em junho, pela primeira vez que se pronunciou publicamente sobre a guarda legal.
Durante a maior parte do tempo que durou a tutela, Britney Spears não teve sequer o direito de escolher o seu próprio advogado, para a defender. Esta é a mesma condição em que um criminoso sem condições para pagar a um advogado se encontra quando vai a tribunal responder pelas acusações. A única forma desse advogado receber pagamento pelo seu trabalho é através de uma petição, tendo o tutor o direito de objetar contra os honorários solicitados. Ele ganhava 3 milhões de dólares porque o progenitor da tutelada o autorizava. O próprio advogado da filha estava nas mãos do pai. Não é surpreendente que a Britney não confie no advogado que lhe foi aplicado durante anos.
A artista acusou também os responsáveis pela tutela de não permitir que ela removesse o controlo de natalidade. “Quero poder casar-me e ter um filho. Disseram-me agora na tutela que não posso casar nem ter um filho” afirmou.
Durante um espetáculo durante a sua residency em Las Vegas, altura durante a qual o seu círculo íntimo era muito pequeno e entrevistas espontâneas eram muito raras, a Britney falou um pouco ao microfone com a audiência. Nesse discurso entre músicas, disse que falar com os fãs “sem música, só o microfone, parecia ilegal”. Por que razão falar espontaneamente parece ilegal para uma mulher de 30 e tal anos? Porque cada movimento seu era controlado.
A princesa da pop trabalhou sem parar e fez outros ganharem muito com o seu trabalho. A música deixou de ser uma paixão. Passou a ser uma obrigação. Trabalhava porque era obrigada e, dos lucros, via aquilo que o tutor decidia atribuir-lhe. Não é muito diferente de exploração.
No final de julho, a artista submeteu um pedido para que o pai fosse removido da tutela. Na audição de tribunal, acusou-o de abusar da posição que detém desde 2008 para benefício próprio e de a controlar exageradamente, confirmando as crenças do movimento Free Britney. A 12 de agosto, após muito mediatismo do caso com vários documentários lançados este ano sobre o assunto e pressão pública, Jamie Spears concordou em abandonar o cargo de tutor da filha, ao fim de 13 anos de controlo das finanças da cantora, dando início ao que autodenominou “processo de transição”. Num documento de tribunal, entregue pelo advogado Vivian Thoreen, o progenitor revelou estar “disposto a renunciar” quando chegasse a altura certa. O documento não previu, contudo, um prazo para a demissão e esta arrastou-se, com o progenitor ainda a reclamar um pagamento pela cedência…
Depois de anos de audiências atrás de audiências, sem nada mudar, uma mulher bem-sucedida foi mantida por mais de 10 anos, nesta situação de controlo excessivo, a faturar fortunas sem as poder gerir e a ter mesmo de pedir autorização para coisas simples, como comprar hambúrgueres ou livros.
Apesar de Britney já ter confessado que a situação a tem traumatizado, o pai continuou a alegar que tenta agir sempre em função dos “melhores interesses da filha”. O que a filha diz é “ele adorou o controlo que teve sobre mim”
Ela está finalmente livre da tutela, mas o mundo deve um pedido de desculpas a Britney Spears. A nossa sociedade permitiu tudo isto.
Artigo da autoria de Bruno de Azevedo