Artigo de Opinião
Pobre pai que não era banqueiro
Todas as teses e opiniões merecem uma contextualização, uma manifestação de interesses e um exercício de honestidade, sob pena de exporem em exagero interpretações enviesadas, que nada têm a ver com discordância.
Fui educado num ambiente rural. Dos cinco filhos que a minha avó materna teve, apenas um usufruiu de formação superior (porque decidiu ser padre), provavelmente o que mais ‘pisado de lenha’ ficou na sua infância, pela rebeldia (hoje, entendida muitas vezes como ousadia) de desafiar constantemente os padrões sociais vigentes e ter chegado a faltar, descaradamente, ao respeito aos professores. A mesma avó Maria que enchia os filhos de porrada ao mínimo sinal de desrespeito pelos mais velhos ou desvio nos modos e valores sociais, punha-se entre mim e a minha mãe para que não me desse uma bofetada por ter voltado a fazer asneiras. Netos são netos. E os tempos são outros.
A minha mãe nunca me ‘pisou de lenha’ mas, para meu azar e sorte dela, tinha a ‘mão pesada’ e envergonhava-me mais uma bofetada na ‘hora certa’ do que privar-me de qualquer prazer material ou confinar-me a um castigo. ‘Só se perderam as que caíram no chão’.
Há 3 dias, o Tribunal de Coimbra condenou um pai a três anos de prisão, com pena suspensa, por levar o filho a trabalhar consigo, como eletricista, durante as férias escolares.
Sejamos honestos. Trabalhavam das 7h00 às 20h00 e esse pai fora condenado por violência doméstica contra a mulher (de quem se separou) e ‘caíram’ outras acusações, por configurarem ‘apenas’ ofensas à integridade física e as queixas não terem sido apresentadas em seis meses.
Não vou questionar a apresentação de uma queixa mais de seis meses depois do alegado delito. Toda a violência gratuita deve ser reprovável. Mas, tudo me parece arrumado, a esse respeito. É reprovável pôr um filho a sangrar do nariz ou dar uma bofetada com tanta força a uma filha, que o “brinco ficou preso ao pescoço”.
Quando eu tinha 14/15 anos, já era notória a loucura que expressava pelo meu Varzim Sport Club. Corria a época 2009/2010 e ainda era ténue o domínio das televisões sobre os espectadores fiéis aos estádios.
Pedi autorização à direção varzinista para aceder à zona de imprensa, e ao meu pai uma câmara de filmar HD, que custava quase 500€, para gravar os jogos do meu clube. Como não costumava pedir consolas e telemóveis aos meus pais, nem era habitual receber prémios pelo mérito escolar, achei que seriam ‘favas contadas’.
“Vais ter de conquistar a máquina. É muito dinheiro!”. Caiu-me tudo. À exceção de umas transcrições do livro de contas do gabinete e do preenchimento das lombadas das capas dos clientes, a troco de umas coca-colas e de uns chocolates, nunca tinha trabalhado na vida. Tinha 15 anos! (só não tinha noção que tinha um pai que, afinal, é um explorador esclavagista e um selvagem laboral que força os filhos a trabalhar).
Durante as férias de verão (ainda que com horários simpáticos) trabalhei no seu gabinete de engenharia, auferindo 200€ por mês, para poder comprar a câmara. Abençoado ensinamento. Nunca mais esqueço o dia em que fui à loja, com a autoridade que um miúdo de 15 anos acha que ganha por ter 600 ‘lecas’ na mão, e lá comprei a câmara, cartão de memória, bolsa e tripé. Ainda hoje uso o mais antigo equipamento tecnológico que comprei com o suor do meu trabalho. Devia ter sido forçado a mais trabalho, mas não fui. Arrendei o meu primeiro espaço (o bar do campo de futebol do clube da minha terra) com 20 anos, e iniciei o meu primeiro negócio a sério aos 23.
Voltando ao tribunal e à condenação do pai que forçou o filho a trabalhar consigo nas férias, não sou capaz de me atirar aos juízes. Eles foram veículo de um padrão social em construção mas, mais do que isso, de um conjunto de políticas que vêm sendo implantadas sobre a educação dos ‘nossos filhos’.
Desconfiemos, de cada vez que um político diz “à justiça o que é da justiça”, porque, quem faz as leis e estabelece as penas são os políticos. Quem as aplica aos cidadãos sob a capa da independência e da neutralidade é que é a justiça. Por isso é que é tão importante refletir também uma política de valores e da sociedade que estamos a construir e articular, tal como na economia, causas e efeitos.
Como podemos queixar-nos de uma nova geração que, alegadamente, não quer trabalhar, produzindo profissionais, juízes, políticos e professores mimados e preguiçosos, se não somos capazes de os habituar a subir às árvores para colher uma tangerina e correr na frente do dono delas, tampouco aceitamos apertar-lhes uma orelha com uma mão disciplinadora ou pô-los a trabalhar para ajudar as despesas ou suarem pelas pequenas conquistas!?
A minha mãe é uma ‘moura’ de trabalho. Há dois anos atrás, chegou a acumular o seu emprego com o apoio de 4 horas diárias que me dava no café durante a semana (cerca de 30 horas ao fim de semana) e, ainda cuidava da minha avó, de um meio-irmão acamado, dos meus avós paternos (um fim de semana por mês) e das lides domésticas. Como conseguia? Nem eu sei, mas talvez os 50kg de batatas que carregava às costas, nas madrugadas de verão, para poder ir com a irmã à praia, ou o despertar antes das 6 da manhã, para deixar o trabalho no campo adiantado, antes de ir para a escola primária, tenham dado uma ajuda.
Ainda não falei do Rendeiro? Pois não! Desculpem-me a ‘canalhice’, mas é para terem noção dos assuntos pertinentes e urgentes que se colocam nos nossos dias e que, mesmo tendo conteúdo para um texto destes, são escondidos por títulos vazios e sensacionalistas, onde se passam horas a discutir se os boxers deviam ter bolinhas amarelas ou listas encarnadas.
Enquanto não se debate a sério, permitam-me uma homenagem aos pais que põem os filhos a trabalhar e às mães que batem nos filhos e vão chorar para a almofada do quarto, sozinhas. Mas, é tempo de refletir, antes que se torne inviável – não um retorno – mas o reequilíbrio.
Artigo da autoria de Tiago Oliveira