Artigo de Opinião

Maioria imprevisível, reflexão absoluta

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No rescaldo das eleições legislativas mais concorridas dos últimos anos – ainda assim, com a terceira mais alta taxa de abstenção de sempre – e após ler e ouvir dezenas de comentários a respeito, chego à conclusão de que há poucas dúvidas sobre os efeitos políticos práticos dos resultados, mas muitas ilações a tirar sobre as suas causas e possíveis consequências.

Do desaparecimento de dois partidos – o PEV e o CDS, este último mais relevante devido à sua história e ao facto de ter sido um dos fundadores do sistema democrático em Portugal –, bem como de figuras importantes do nosso parlamento, como António Filipe, João Oliveira ou José Manuel Pureza, até à retumbante queda de uns (CDU, BE e PAN) ou substancial reforço de outros (Chega!, IL e o próprio PS), a noite de 30 Janeiro foi surpreendente a diversos níveis. Mas é na hora de tentar explicar como aqui se chegou que as opiniões se dividem, e onde aquilo que aparenta ser confuso pode, na verdade, ser bem mais simples de perceber.

Digo confuso porque, ao contrário do que seria expectável dada a dimensão da vitória do PS, praticamente todas as pessoas com quem falei se mostraram surpreendidas com este desfecho. Surpreendidas e até desapontadas, sem conseguirem perceber ou explicar o sentido de voto daqueles que se deslocaram às urnas. Poderá o caro leitor achar que esta minha experiência advém, certamente, do meio que frequento, que será elitista, da alta burguesia ou de gente rica… nada mais errado. Também eu fiquei bastante surpreendido com o resultado eleitoral: não tanto com o crescimento exponencial da extrema-direita que, apesar de esperado, acabou por verificar-se, mas sim com a massiva transferência de votos para o PS e, simultaneamente, a (aparente) incapacidade das forças mais à direita de conseguirem passar a sua mensagem e captar eleitorado.

É importante salientar que das últimas legislativas, em 2019, para estas, houve um significativo rebalanceamento de forças entre a esquerda e a direita no parlamento. Em 2019, considerando os partidos que obtiveram um resultado igual ou superior a 1%, a esquerda toda junta – isto é, PS, BE, CDU, Livre e PAN (apesar de “neutro”, tem políticas maioritariamente orientadas para a esquerda) – representava cerca de 57,2% dos votantes, contra 34,8% de todos os partidos de direita – isto é, PSD, CDS, Chega! e IL. Nestas eleições, nas mesmas circunstâncias, os partidos de esquerda não vão muito além de 53,3% de votos, enquanto a direita cresce para cerca de 43%. Todavia, é neste cenário que o PS alcança a maioria absoluta, crescendo cinco pontos percentuais. Como é que se explica isto? Estariam os portugueses realmente preocupados com a estabilidade governativa? Não creio, até porque este é um argumento que extravasa a simples retórica esquerda-direita, ou seja, poderia colher votos em ambos os lados. A meu ver, a razão principal reside num pequeno grande detalhe, pouco falado e analisado publicamente por ser um assunto delicado e um argumento que muito facilmente pode ser alvo de crítica e polémica quando descontextualizado.

No final do ano de 2021, segundo dados da própria Segurança Social, o Estado tinha um encargo de mais de 7 milhões de prestações sociais (7 075 077, para ser mais preciso) a serem pagas todos os meses. Num cenário teórico em que não houvesse qualquer duplicação de prestações, isto é, em que cada beneficiário recebesse somente um apoio do Estado, significaria isto que só 3 portugueses em cada 10 não recebem apoios ou subsídios. De acordo com o publicado em Diário da República, estavam inscritos nos cadernos eleitorais para votar nestas eleições 9 306 120 pessoas. Não obstante, para efeitos estatísticos, mesmo que apoios como o abono de família sejam atribuídos aos próprios menores, quem os recebe e gere, na prática, são os pais ou tutores – eles sim, eleitores recenseados. No mesmo plano teórico, quer dizer que mais de 3 em cada 4 eleitores portugueses recebe um apoio estatal. Relevante?

A questão que se coloca não é se o Estado gasta muito ou pouco, não é se os apoios são devidos ou não, nem tampouco a subsídio-dependência, todos eles temas merecedores do seu espaço de debate. A verdadeira questão é o impacto que isto poderá ter tido (ou teve, efetivamente, na minha opinião) na decisão sobre onde colocar a cruz no boletim. Quererá isto dizer que todas estas pessoas votaram no PS? Certamente que não. Ou então que o PS só obteve votos de beneficiários de apoios estatais? Ainda menos. Mas estou em crer que se o caro leitor fosse (ou for, de facto) de algum modo apoiado pelo Estado, devido a uma qualquer circunstância pessoal e/ou profissional, seguramente defenderia uma continuidade, votando no partido que estivesse já no governo, ao invés de arriscar uma ruptura, dando o seu voto a um outro que não suportasse esse governo e que isso pudesse, eventualmente, originar uma alteração na atribuição desse apoio. Será um raciocínio quase automático, paradoxalmente até quase irrefletido, que encontrou nestas eleições ainda mais uma agravante: o Chega!. A estratégia adoptada pelo PS, numa tentativa constante de “colagem” do PSD ao partido de André Ventura, que tem como uma das principais bandeiras a luta feroz contra os subsídio-dependentes, refletiu-se sobretudo nos últimos dias de campanha, e não terei muitas dúvidas em afirmar que terá sido o gatilho que fez disparar o PS nas intenções de voto, não só dentro da parcela dos indecisos, mas roubando, inclusivamente, votos à direita. Para além de assustar o eleitorado, exaltando o perigo da extrema-direita, esta estratégia terá, sem dúvida, assustado esta franja particular de eleitores, levando-a a votar massivamente.

A ter alguma relação com a realidade, como acredito, estamos perante uma autêntica bola de neve socialista, onde o próprio Estado, “engordando-se”, condiciona de forma direta ou indireta, consciente ou inconsciente, o sentido de voto de muitas pessoas. Isto favorece – e favorecerá sempre – o partido que estiver no governo, seja ele qual for. Esta bola de neve é um processo autofágico e pernicioso, que urge travar e inverter, antes que seja tarde demais. É um obstáculo ao progresso, é um embargo ao crescimento económico do país e não é saudável à democracia.

Clamar por mudanças é, bem sei, muito mais simples do que pô-las em prática, nem num simples artigo seria possível dissecá-las todas. O que me parece certo, é que será preciso mudar políticas (e bastante), fazer grandes reformas, implementar mais e melhor fiscalização (que não é um bicho-papão, mas antes a garantia de maior equidade) e adotar uma mentalidade meritocrática, que privilegie quem trabalhe, quem produza, quem inove, no fundo, quem mereça.

Artigo da autoria de Luís Meira

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