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Artigo de Opinião

Ucrânia e refugiados: a solidariedade deve ser imparcial?

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Muito se tem falado sobre o que está a acontecer na Ucrânia. Eu, por economia de palavras, não vou adicionar muito ao assunto: parece-me quanto baste, para este texto, manifestar a minha solidariedade com o povo ucraniano, confiando que o leitor, como eu, está a par da gravidade da situação. Da invasão russa nasceu uma nova (e grande) crise de refugiados: à hora da escrita deste artigo, mais de 1,7 milhões de pessoas já fugiram da Ucrânia. Daqui parece estar a nascer uma outra fonte de tensão mediática: esta crise de refugiados é nova; mas a crise de refugiados, enquanto tal, não tem nada de novo – por que, então, ouvimos falar tanto deste assunto? Porque nos sentimos mais comovidos pela situação ucraniana? Por que é que massas tão grandes se movem para ajudar o povo ucraniano, mas não houve um movimento comparável para ajudar, por exemplo, o povo sírio?

Diante destas perguntas, alguns tentaram dar uma justificação de índole psicológica: sentimo-nos mais facilmente movidos a ajudar o povo ucraniano porque somos europeus e os vemos como europeus; e, claro, nos sentimos psicologicamente mais impelidos a ajudar “os nossos”. Talvez isto até seja uma explicação adequada do que aconteceu – talvez seja verdade que os europeus se sintam mais tocados pela dor de um europeu, ou que aqueles de pele clara se sintam mais tocados pela dor de pessoas de pele clara –, mas isso, tal como facilmente podemos ver, embora possa servir de explicação, não serve, de modo algum, de justificação. Por outras palavras, talvez a parecença física possa explicar porque nos sentimos, psicologicamente, mais compadecidos pelo povo ucraniano; mas, já que, evidentemente, a parecença física não faz os ucranianos mais humanos do que os afegãos, isso não justifica que nos mobilizemos mais para ajudar os ucranianos do que nos mobilizamos para ajudar o povo afegão (ou, para o pôr na positiva: não justifica que nos mobilizemos menos para ajudar o povo afegão do que nos mobilizamos para ajudar o ucraniano). Não falta até quem tenha feito ver – e não sem razão – que isto, para além de não justificar a discrepância de reações, demonstra o racismo ainda presente no povo europeu, que toma decisões baseadas no tom de pele das vítimas: aqueles com um tom de pele claro, nós ajudamos; aqueles com um tom de pele mais escuro, deixamos morrer.

Até agora, procurei apresentar uma espécie de diagnóstico do que parece estar a acontecer; pretendo agora lançar algumas questões de índole moral, que me parecem, quer relevantes em si mesmas, quer oportunas para a discussão em mãos. Antes, porém, e porque não desejo ser mal interpretado, cabe explicitar aquilo com que concordo do parágrafo anterior. Concordo que as semelhanças físicas entre o povo ucraniano e o resto dos povos europeus fornece uma explicação psicológica, ainda que parcial, da discrepância de reações. Concordo também que essa explicação, em si, não justifica a dita discrepância. E concordo, por fim, que essa explicação denota alguma mentalidade racista ainda presente, se em mais ninguém – coloco a mão no peito –, pelo menos em mim mesmo.

Feitas estas clarificações, passemos para as questões morais. Quem estuda Lógica sabe que há uma falácia informal (isto é, um erro de raciocínio) muito comum em discussões do género – mas não menos falaciosa – chamada “bulverismo”.  Esta falácia acontece sempre que, em vez de analisarmos as ideias de alguém para daí concluirmos se estão certas ou erradas, assumimos à partida que estão erradas e tentamos explicar por que é que esta ou aquela pessoa têm essas ideias. Aplicando ao caso presente, todos podemos concordar que talvez até seja racista compadecermo-nos mais dos ucranianos do que dos sírios por causa do seu tom de pele; mas isso não significa que seja errado compadecermo-nos mais de uns do que de outros, nem que tenhamos a obrigação de ajudar todos igualmente.

O que me parece relevante, então, é resgatar esta polémica de discursos estéreis acerca do racismo, para nos podermos colocar uma simples, mas profunda, pergunta ética: a solidariedade deve ser imparcial? Ou, dito por outras palavras, temos as mesmas obrigações morais para com os que estão longe, como temos para os que estão perto? Todos sentimos que temos que fazer algo pela Ucrânia, mas muitos não sentimos isso quanto a outras crises: será isso apenas racismo? Será apenas porque nos parece que desta vez a guerra está à nossa porta? Ou haverá boas razões morais para o fazer?

Talvez nos sintamos impelidos a responder que “todos são pessoas, todos merecem ajuda”. Não discordo disso – aliás, sendo católico, adicionarei: “todos temos igual dignidade, todos somos irmãos”. No entanto, se levado às últimas consequências, um princípio de solidariedade imparcial, implicando que não temos mais obrigações para os que estão mais próximos, parece implicar, por exemplo, que um pai não tem mais obrigações para com os seus filhos do que para com as crianças do Bangladesh ou das ruas de Calcutá. É esta uma posição moralmente razoável?

Não estou a dizer, de modo algum, que não tenhamos obrigações para com os mais desfavorecidos só porque estão longe. Estou a dizer, isso sim, que, a meu ver, temos mais obrigações para com aqueles que estão mais próximos. Não é apenas uma questão de “sim e não”, mas, dentro do sim, de mais e menos.

Eis, então, a minha resposta à pergunta: «Deve a solidariedade ser imparcial?». Quanto à sua existência (ser ou não ser solidário), a solidariedade deve ser imparcial. Isto significa, a meu ver, que, se alguma pessoa precisa de ajuda, nós temos o dever moral de a ajudar. Quanto à sua intensidade, porém, a solidariedade deve ser parcial. Isto significa que, na minha opinião, há diferentes graus de dever; e a solidariedade para com os que nos estão próximos se encontra num grau mais elevado.

Gostaria agora de fazer duas breves ressalvas e de concluir este texto. A primeira ressalva é que eu disse “os que nos estão próximos”, não “os que nos são próximos”. O que pretendo com esta distinção é salvaguardar que, na minha ótica, não são os meus afetos por uma pessoa que conferem uma maior obrigação moral. Também não pretendo dizer – isso seria ridículo – que o único critério é a proximidade espacial num dado momento (como se tivéssemos mais obrigações para com um estranho a dez metros do que para com um filho a dez mil quilómetros). Ao usar o verbo estar, pretendo dizer que, segundo esta linha de pensamento, temos mais obrigações para com aqueles que, no decorrer da nossa vida, nos são apresentados com algum tipo de relação de proximidade. A segunda ressalva é esta: a proximidade, claro, não é o único fator. Ceteris paribus, devo ser mais solidário para com os meus filhos, sim; mas isso é ceteris paribus. Na vida, porém, na maioria das vezes, cetera imparia. Por outras palavras, aceitar alguma parcialidade na solidariedade não significa, de todo, promover uma cultura de clãs.

Quanto a mim, dito tudo isto, concluo que me parece razoável que tenhamos mais obrigações, sendo nós europeus, para com o povo ucraniano do que para com outros povos. Isto, claro, não significa que não tenhamos obrigações para com esses outros povos! E também não significa que as nossas motivações não devam ser purificadas. O que pretendi defender é, simplesmente, que me parece legítima uma maior mobilização e comoção para com a situação ucraniana. Não pretendo defender, desde logo porque não concordo, que seja legítima a falta de mobilização e comoção para com, por exemplo, a situação síria ou afegã.

Não peço ao leitor que concorde comigo. Peço-lhe, porém, que pare uns instantes e responda a esta pergunta: a solidariedade deve ser imparcial?

Artigo da autoria de Gonçalo Costa