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Crónica

Falemos na arte de dormir

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Na sua mais rudimentar definição, entende-se por dormir: estar em repouso, conservar-se imóvel– ou pelo menos é isso que o Priberam sugere. Logo aqui, é possível concluir que o responsável por esta designação não conhece o significado da palavra “imóvel”. Eu falo por mim, acho que nunca acordei na mesma posição em que adormeci, tendo recriado toda uma coreografia de dança contemporânea durante o processo.

Este constante movimento, por vezes, é um entrave ao meu descanso. Volta e meia, é necessário acordar para ajeitar o cobertor desorientado após múltiplos rodopios. Contudo, a verdadeira kryptonite do meu sono é, sem dúvida alguma, o despertador.

Acho que a rabugice matinal de todos nós se cinge ao insuportável som causado por esta pequena máquina. Note-se, não estou a criticar o facto de existirem despertadores, aliás eles são essenciais para o normal funcionamento de todas as nossas vidas. Porém, numa altura em que o Homem já foi à Lua, já desenvolveu máquinas inteligentes, o Sporting já foi campeão, passaram-se anos e anos e nenhuma mente brilhante conseguiu arranjar uma maneira mais aprazível de acordarmos? Estou numa fase em que o meu despertador já não me irrita, ele assusta-me. Eu tenho medo do meu despertador. O meu subconsciente já me faz acordar minutos mais cedo para que não tenha de passar pelo sofrimento de ouvir aquele ruído; quando não o consegue fazer, acordo com o coração na boca, a tremer.

No meio do terror há sempre alguém com quem posso contar, a minha almofada. A relação que tenho com esta amiga é de genuíno carinho e fidelidade. A minha almofada é condição necessária na equação dormir bem. Ela conhece a minha cabeça e vice-versa, é uma linda história de amor. Existe o velho ditado, criado pelos mais eruditas, que diz “antes trocar de mulher do que de clube de futebol”. Eu sugiro “antes trocar de clube de futebol do que de almofada”.

Depois há a questão dos sonhos. Todos nós temos sonhos inesquecíveis, sonhos que tivemos em criança e que nos lembramos até aos dias de hoje. Um tipo de sonho que a chapada que a realidade nos deu no momento em que a nossa mãe gritou “acorda” foi demasiado dolorosa. Um cenário alternativo onde tudo corria de feição e nós éramos donos e senhores do mundo. O problema é que, à medida que os anos passaram, fui sonhando cada vez menos. Com quase 20 anos é raríssimo lembrar-me com o que sonhei na noite passada. É um ultraje! Acordo no mesmo mundo escuro em que me deitei, sem que pelo meio viaje para uma realidade onde sou melhor amigo do Ronaldo ou conduza um Bentley Continental GT. É que nem um pesadelo tenho sequer, os egoístas dos ucranianos ficaram com eles todos. Enfim.

Termino com uma declaração polémica: dormir é uma perda de tempo. É tempo a mais que passamos de olhos fechados. Tempo esse que seria útil para dedicar a uma das mil e uma coisas que nos consomem todo o tempo que temos de olhos abertos. É em momentos como este que invejo Marcelo Rebelo de Sousa, que apenas dorme cerca de 4h por noite. Duvido seriamente que viesse a ser Presidente da República se também padecesse desta necessidade comum à restante raça humana. Qual visão raio-x qual quê, este era o super-poder que todos os super-heróis gostavam de ter.

 

Artigo da autoria de José Miguel Dantas

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