Artigo de Opinião
Uma questão de ordem de ideias
Corre a tarde de 11 de Abril de 2022. Uma criança regressa a casa após ter estado a brincar num pequeno parque e pede à mãe que lhe prepare um lanche, pois está esfomeada. Ao mesmo tempo, num outro local mais distante, uma outra criança, também esfomeada, está já em casa, pois não pode sair nem ir brincar para os parques e, provavelmente, não terá hipótese de comer um pequeno lanche.
Diferenças entre as duas situações: a primeira trata-se da descrição dum cenário hipotético, a segunda é uma história verídica; a primeira poderia ter sido ao lado da minha casa, da do leitor ou, seguramente, num qualquer outro lugar por esse Portugal fora, enquanto a segunda ocorreu em Kharkiv, na Ucrânia; e, por fim, na primeira situação (como nas eventuais situações reais) essa criança poderia, no dia seguinte, tornar a ir ao parque brincar, mas a segunda não. E a razão não é por desde o dia 24 de Fevereiro a situação em Kharkiv ser de perigo iminente e de existir um evidente receio pelos constantes ataques. Não. Tal deve-se ao facto de, efetivamente, um rocket ter caído na casa onde estava esta criança e de o seu corpo jazer, agora, junto a uma parede destruída, a céu aberto, conforme testemunhou uma cadeia televisiva.
Já se passaram mais de 50 dias desde o início da invasão russa na Ucrânia, o que significa mais de 50 dias de intensos conteúdos que chegam até nossas casas. Infelizmente, nos últimos dias estes têm-se revelado mais horrendos, facínoras e atrozes, à medida que se revisitam os sítios antes ocupados pelas forças do Kremlin. Esta imparável onda de relatos, imagens e vídeos fará com que em torno de algumas pessoas, a pouco e pouco, se vá formando uma nuvem que contamina tudo com uma certa dose de normalidade, tornando-as quase apáticas às barbaridades a que todos os dias se assiste. Não é nada que já não acontecesse antes, por exemplo, aquando da guerra na Síria ou da crise de refugiados, onde morreram dezenas de milhares de pessoas; e continuam a morrer, porque fale-se ou não, esta guerra (a da Síria) e esta crise (a de refugiados) não terminaram. Tudo deixa de ser novidade e choque para passar a ser algo quotidiano e, assim, vamo-nos tornando indiferentes.
Mas se, a cada dia que passa, a couraça da nossa indiferença se vai robustecendo perante a hediondez que nos chega do epicentro da guerra, há algo que, ao invés, nos recorda que tudo isto não é simplesmente uma coisa que está a acontecer num lugar longínquo e que nós, portugueses, estamos aqui bem e tranquilos, neste jardim à beira-mar plantado. O martelo russo bateu com estrondo em território ucraniano, mas as ondas de choque propagam-se e os seus efeitos repercutem-se muito para lá das suas fronteiras. A maior parte de nós já começou a senti-lo e irá senti-lo ainda com mais intensidade e durante algum tempo. Desde logo os efeitos económicos, a começar na energia – sobretudo o preço dos combustíveis, do gás e da eletricidade – passando pelo sector da construção, até aos artigos alimentares, onde há casos de produtos que mais do que duplicaram o seu preço no espaço de algumas semanas. Não obstante, ainda que haja outros efeitos a curto ou a longo-prazo (sociais, políticos, etc.) que seguramente se farão sentir, nenhum nos deixará menos indiferentes do que aqueles que mexem direta ou indiretamente na nossa carteira. Esses sim, revoltar-nos-ão realmente! Nos meios de comunicação social suceder-se-ão histórias de verdadeiro horror e angústia, a que continuaremos a assistir como se de um filme se tratasse, sempre à espera das cenas dos próximos capítulos. E indignar-nos-emos seriamente com cada notícia de aumento de preços, de redução do poder de compra, de inflação e especulação, enfim…
A revolta e a indignação são sentimentos legítimos e que devem mobilizar cada um de nós, dentro dos nossos limites, na tentativa de mudar algo. Mas a fugaz preocupação com o que de mais relevante sucede tem de fazer soar os alarmes da nossa balança racional, do nosso equilíbrio de juízo, e talvez fazer-nos refletir sobre o estado da nossa lógica hierarquizante. De uma perspectiva puramente pragmática, faz todo o sentido que fiquemos desagradados com as contrariedades que esta guerra nos causa; do ponto de vista humano, é imoral que banalizemos ou passemos para segundo plano o que acontece no leste da Europa.
Têm de ser inequivocamente condenadas a invasão e as agressões da Rússia a um país vizinho e soberano, apenas justificadas pela deriva expansionista insana duma mente obcecada pelo passado soviético. E se parece óbvio que não será nenhum de nós, individualmente, a desempenhar um papel-chave na sanação desta guerra, é certo que seremos nós o principal “crivo” e seremos nós os juízes da atuação de quem nos representa (e ao nosso país), esses sim, aqueles que podem de forma mais ou menos direta e decisiva, influenciar o desenrolar dos acontecimentos. Não dependendo de nós, depende sempre de nós e é por essa razão que não podemos ser os responsáveis pelo despontar duma secundarização do problema principal deste conflito, por muito que também possamos ser alvos colaterais dele. Foquemo-nos primeiramente em fazer o que está ao nosso alcance para contribuir para a sua resolução e, depois sim, passemos para primeiro plano a gestão dos danos. Pode parecer um pormenor insignificante, mas eu, pelo menos, sinto-me muito melhor comigo mesmo se perceber que é esta a minha ordem de ideias.
Artigo da autoria de Luís Meira