Crónica
Nós portugueses
Bem, após ouvir aquelas quatro palavrinhas – ditas com um sotaque que evidenciava a falta do domínio do português -, imediatamente pensei “como é que alguém que não fala português consegue trabalhar aqui?”, fiquei verdadeiramente estupefacto. A minha perplexidade era de tal ordem que me acompanhou até ao quarto copo de tinto. Quando finalmente tive a mente livre da fermentação do sumo de uva, refleti e concluí o insulto que aquele quarteto de vocábulos era para todos nós portugueses.
O que aquele estabelecimento moderno e sofisticado transparecia era que, na lista de exigências dos seus funcionários, “falar português” vinha hierarquicamente logo a seguir a “saber regar plantas”. No fundo, os funcionários não têm de se preocupar com a língua de Camões porque o rústico cidadão português não tem o glamour indicado para frequentar aquele sítio. E sabem que mais? Por mim, está tudo bem.
Não me interpretem mal, eu gostei muito da experiência e foi um bom bocado que todos passamos ali. Contudo, no mesmo dia, jogava o Porto contra o Sporting e, ao chegar a casa, sentar-me, abrir uma mini e comer uma fatia de pizza, senti-me inexplicavelmente melhor. Não sei se foi da própria cerveja, da comida de plástico ou da sinfonia ao nível do vernáculo, que alegava uma profissão muito específica sobre a mãe do árbitro da partida – uma declamação poética que deixaria D. Afonso Henriques orgulhoso -, no entanto, o ambiente que se gerou a ver a bola fez sobressair o patriota que há em mim.
Ser português é muito isto. É comer muito, é beber demasiado, é rir alto, é explorar os limites da nossa rica língua para o mal, é fazer piadas sem graça, enfim, um vasto leque de qualidades socialmente embaraçosas. E compreendo que estes critérios não se encaixem nos vossos preciosos e refinados cultos de degustação, e é por isso que se inventaram as “tascas”.
“Saudade” é o único léxico da língua portuguesa que é intraduzível, porém a definição de “tasca” é uma que não é particularmente fácil, é algo bastante lato. A tasca é um lugar onde nós, os javardos, nos sentimos em casa. Onde há sempre conversa entre mesas, algo para petiscar e refrescar a boca, onde nem tudo é perfeito, mas a aura positiva e alegre que impera faz com que qualquer defeito existente seja visto de um ângulo diferente. O que seria, por exemplo, caro leitor, entrar num estabelecimento que se autodenomine de tasca e que não possua a icónica “mesa coxa”. E caso algum de vocês, ilustres multiscientes, quiser algum dia juntar-se a nós terá sempre uma cadeira onde se sentar. Porque mesmo tendo todos estes defeitos, haverá algo que sempre caracterizou o cidadão português e sempre o há de caracterizar: a sua simpatia.
O português sabe receber, ajuda e dá uma mão amiga sempre que puder. A “tasca” de um português é a rua, é o café, é um museu, é um concerto, é, basicamente, um lugar onde haja pessoas. Pois a felicidade e vontade de se interligar com os cidadãos de todo este mundo existe sempre que um de nós, descendentes de Garrett, de Pessoa e de Amália, esteja vivo. O cidadão português quer espalhar e ampliar o seu conhecimento, partilhar a sua história, a sua cultura e ouvir a do seu vizinho. Isto é o que é verdadeiramente ser português. Usar esta dádiva que é a palavra para comunicar com os restantes cidadãos deste mundo. Ser português é dar uso à palavra, reconhecer o seu valor e preservar a sua importância. E não há melhor mês do que Abril para o relembrar.
Um português encontra em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade. São princípios inerentes a nós próprios e é por isso que sou orgulhosamente português.
E é também por isso que quando nos quisermos juntar a vocês, e às vossas refinadas atividades, nós adaptamo-nos. Falamos italiano no Porto, francês em Lisboa e inglês no Algarve, para nós é igual. O que importa é que haja alegria, e já agora Casal Garcia também ajudava.
Na realidade, este texto é apenas uma pequena irritação sem nexo porque ser português também é muito reclamar por tudo e por nada, aliás desconfio que foi esse o motivo para o Otávio ser convocado para a seleção. Por isso, espero genuinamente que o estabelecimento a que fui tenha o maior dos sucessos, e que a menina que nos atendeu seja funcionária do mês por 4 anos seguidos – até aprender português e ser despedida. Este texto é o meu tributo a um país em que genuinamente gosto de viver. Podemos ter os nossos defeitos, mas, no geral, somos gajos porreiros.
Artigo da autoria de José Miguel Dantas