Crónica
Malta, porrada nem é assim tão fixe
Nos últimos tempos o termo “porrada” tem vindo a subir na hierarquia dos vocábulos portugueses mais usados. Quase todos os meses lemos, vemos ou ouvimos notícias sobre violentos confrontos físicos. A meu ver, há poucas coisas que possam justificar a substituição da palavra por um gancho de direita em alta velocidade. E penso que é tudo. Porém, há quem discorde da minha opinião e desate a chamar o rambo que há em si porque não há nada de jeito para fazer depois das duas da manhã.
A violência física é algo que me faz bastante confusão. Não entendo simplesmente. Provoca-me um certo vazio no estômago quando vejo episódios destes. E penso que esta é a reação normal de qualquer ser humano. Uma profunda tristeza e incompreensão. Contudo, e o que é realmente perigoso, é a linha ténue que separa essa angústia da raiva. Um sentimento de vingança, de fazer os autores “pagar” pelo que fizeram. E não leva muito mais que um scroll para perceber que a fação “eu vou-te apanhar” é muito maior do que o lado “a justiça fará a sua parte”.
“A justiça tem que ser feita pelas mãos em casos destes”, ou “os agressores não merecem só prisão, mas que lhes façam ainda pior” são legítimos comentários de pessoas em relação a casos de violência – e, atenção, estes justiceiros sociais chegam a ter 49 likes no Facebook, que deve ter um total de 70 utilizadores neste momento, não estamos a brincar. Basicamente, o que estas pessoas defendem é um mundo onde não se deve agredir violentamente ninguém, já se, porventura, houver por aí uns malandros que não perceberam a mensagem, se calhar, não era mal pensado, portanto, agredi-los violentamente.
A opinião pública em relação a estes atos é tão assustadora como os atos em si, e faz-me perceber que podemos estar a caminhar para uma sociedade bruta, violenta, em que o músculo pelo qual nos movemos não é o cérebro. E eu não sei quanto a vocês, mas não é bem isso que eu quero.
Percebo genuinamente o incomensurável desespero que é vermos alguém de quem gostamos com marcas físicas e psicológicas, e, infelizmente, em certos casos a lutar pela própria vida após violentas lutas. Porém, temos de ser fortes. Tentar pelo menos. Perceber que a solução para acabar com a violência não é mais violência. Não é incitar ao ódio, não é querer aplicar a justiça popular, não é reduzir minorias a criminosos e cair na tentação do mais básico, ignorante e elementar racismo. Ou devo relembrar os corajosos homens brancos da marinha que ainda há pouco mataram um polícia…
A único e verdadeira solução de todo este problema é sermos racionais. Sim, usar aquela pequena coisinha que nos distingue dos demais seres deste planeta, a racionalidade. E, repare-se, não é que seja impossível. Ainda este ano, na Gala dos Óscares, um certame visto por milhões de pessoas por todo o mundo, o Will Smith, coitado, ofendido pelos ríspidos insultos de Chris Rock, levanta-se e agride o mesmo. Este, vendo o seu orgulho ferido perante o mundo inteiro, ignora e continua o seu trabalho.
Esta é a atitude certa, a atitude louvável e humanista, caso contrário não há absolutamente nada que nos separe de um mero chimpanzé. É difícil talvez, no entanto, não é impossível. Pois cada vez que duas, ou mais, pessoas se envolvem nestes deploráveis espetáculos, a humanidade perde. Perde todo o seu valor. Marcos históricos deixam de fazer sentido. O nosso querido 25 de abril, o bonito conto da Revolução dos Cravos, da paz, da rebelião pacífica sem derramamento de sangue, passa a ser só uma história vazia e inútil. O povo que derrotou uma ditadura sem disparar uma bala, que mostrou que a arte e a cultura servem para marcar uma posição e que a palavra é a mais forte arma que o Homem pode ter, passa a não significar absolutamente nada. E todo o caminho que percorremos vai por água abaixo. A violência ganha, o medo instaura-se e com ele vêm os movimentos populistas. Vence a discriminação, vence o ódio, vence Putin, vence a Guerra. Quando dermos por nós, estamos aterrorizados numa realidade onde a integridade física é uma miragem e a paz uma utopia.
No fundo, é concluir que a violência é má. A violência é tão estúpida como os anúncios da Swappie, e temos de lidar com ambas da mesma maneira. Temos de nos controlar, evitar como se não fosse nada connosco e, simplesmente, passar à frente. A violência não resolve nada, nunca resolveu e nunca resolverá. A não ser que achem que ananás na pizza é bom, aí merecem levar uma boa mangueirada nas costas.
Artigo da autoria de José Miguel Dantas