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Crónica

Escravos do século XXI

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Antes do mediano texto que se segue, queria congratulá-lo a si, caro leitor, que após ler as palavras “neologismo” e “arcaísmo”, propositadamente colocadas pelo condescende autor deste texto, prosseguiu com a leitura do mesmo. Revelando, assim, ser uma pessoa de uma vasta cultura que sabe bem o significado de ambos os vocábulos, que podiam facilmente incorporar uma pergunta de um exame nacional de português. Ou isso, ou é só um dos meus parcos amigos que apenas leem estas macacadas porque são muito boas pessoas. De qualquer das formas, é de louvar. Bem, mas vamos ao que interessa.

“Penas entre 12 e 17 anos para padre e “freiras” por escravizarem noviças em Famalicão”, foi este o título da notícia que motivou este pequeno texto. Quando me deparei com este conjunto de palavras, o meu cérebro simplesmente paralisou e, estupefacto, naqueles instantes só conseguia pensar: mas que raio são “noviças”? Após uma breve visita ao Priberam, percebi que era uma “mulher em noviciado”. Agora que estamos todos esclarecidos, penso que já podemos passar para o debate sobre o quão insana toda esta história é.

Parece que durante três décadas, na Fraternidade Missionária de Cristo Jovem, em Famalicão, um padre e três mulheres – supostas freiras -, que com ele geriam esta associação de fiéis, andavam a escravizar umas jovens. Num total de 9 crimes de escravidão, estão acusados de “agressões físicas, injúrias, pressões psicológicas e castigos”. Sim, estamos no século XXI. Sim, as mulheres já podem votar. Sim, o casamento entre pessoas do mesmo sexo já é legal na maior parte do mundo. E mesmo assim, há ainda quem partilhe da ideia de que explorar pessoas à base do assédio moral, medo e violência é tão legítimo como dar-lhes um salário e condições laborais dignas de um ser humano. Deixar marcas físicas e psicológicas em inocentes adolescentes em desenvolvimento que vão agora carregar o peso de todos esses maus-tratos e traumas durante uma vida inteira, são apenas efeitos secundários para esta gentinha que vê o trabalho feito a tempo e horas.

Note-se, estamos a falar de uma Fraternidade, não é que haja propriamente muito para fazer. O quão ridículo é escravizar alguém à base de cortar relva e não deixar queimar as hóstias. É que se for para escravizar alguém ao menos façam-no bem, como o Jeff Bezos, por exemplo. O poderoso CEO da Amazon que não deixa que os seus funcionários tenham pausas para ir à casa de banho para maximizarem os seus minutos de trabalhos, com o intuito de ao fim do mês reverterem para mais uns milhões para a sua conta absolutamente astronómica. Utilizo o adjetivo “astronómico” porque são estes homens, que trabalham em condições precárias durante horas extraordinárias, que tornaram possível a sua ida ao espaço. Foi ele próprio que o disse, com uma desfaçatez maior do que o caríssimo foguete que o conduziu ao espaço, quando lhes agradeceu por urinarem em garrafas de plástico, uma vez que foram eles, e cito, “a pagaram isto tudo”. Assim sim, há maldade, mas há também um grande benefício obtido através dessa mesma maldade, justifica-se. Isso e também o facto de ser o homem mais rico do mundo dá-lhe o inegável direito de fazer o que bem lhe apetecer, enquanto nós, passivamente, assistimos enquanto contribuímos para tudo isto ao comprar os seus produtos.

Infelizmente, há vários casos semelhantes. A exploração de migrantes em Odemira, os trabalhadores do Mundial do Qatar que se vêm obrigados a suportar temperaturas impensáveis, que, em última instância, acabam por levar inclusive à morte. Oferecer condições de trabalho que se coadunem com o esforço de um ser humano será pedir muito?

Enfim, o mundo, às vezes, desilude-me. Sei que há um longo caminho para travar, batalhas como a discriminação, a homofobia, a misoginia ou a xenofobia, contudo, escravidão?! Isso, para mim, é algo pré-histórico, um combate vencido e ultrapassado, uma palavra que aprendi nos livros de história e pensei que somente lá ela iria continuar. Daqui a pouco segue-se uma guerra, não?

Parece que estamos todos sujeitos a sermos vítimas de abusos desumanos e de pura crueldade. Padre Joaquim Milheiro, Maria Arminda Costa, Maria Isabel Silva e Joaquina Carvalho são os autores destes horrendos crimes, e tal como as vítimas terão eles também de carregar todo o peso de todos estes delitos. Sirvo-me das sábias palavras de Seneca: “O maior castigo do mal praticado é tê-lo praticado”. E, dado à sua idade, como provavelmente não estarão cá para cumprir a totalidade da pena, terão o resto das suas vidas para, junto do Deus em que acreditam, tentar encontrar palavras que possam justificar toda a bárbara violência que vai contra a Sua palavra, algo a que devotaram toda a sua vida. Lembro-me de, na minha infância, um padre me ter mandado rezar 3 Avés-Marias e 2 Pais-Nossos quando lhe confessei ter roubado um chupa-chupa num restaurante, nem quero imaginar o que estes terão de passar quando se forem confessar.

No fundo, esta crónica pode ser resumida numa frase: não escravizem, é que não vos fica nada bem. Especialmente se tiverem idade para serem avós, estragam toda a bela inocência e bondade dessa fatia da população que toda a gente adora.

 

Artigo da autoria de José Miguel Dantas

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