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Crónica

“Cabelo, cabeleira, cabeluda, descabelada”

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Cortar o cabelo não se trata de um mero movimento de tesouras que reduz o nosso volume capilar, é muito mais do que isso. É todo um procedimento que tem de ser planeado ao detalhe. Exige um balanço económico a fazer, para percebermos se devemos gastar ou não os 10 euros que temos guardados na gaveta- que para um jovem adulto é sempre um capital significativo-, é a escolha do penteado, se vamos optar pelo corte normal ou arrojar um pouco e, com o auxílio da navalha, pedir educadamente ao nosso barbeiro para nos assemelhar ao nosso ídolo futebolístico. Enfim, é algo que meticulosamente preparamos na nossa cabeça antes de pormos em prática, a não ser que sejas um menor de 12 anos. Nesse caso, é só cumprir ordens da tua mãe e aceitar o “estás lindo” quando tudo acabar, enquanto choras por dentro porque sabes que ficaste com uma “tigela ridícula”.

É de ressaltar ainda a altura em que decidimos ligar para o cabeleireiro. Eu nunca gosto de marcar coisas pelo telemóvel, pois tenho uma certa, e inexplicável, preguiça. Já quando se organizam jogatanas da bola, jantares ou eventos do género, eu sou sempre dos primeiros a reforçar a minha vontade em não ligar. Quando se trata de marcar o corte de cabelo, o sentimento é o mesmo. É uma espécie de negociação com as horas da marcação que eu acabo sempre por perder, agendando o meu corte para as raras manhãs da semana em que podia ficar tranquilamente a dormir.

Após concluída toda a fatídica fase de preparação, chega o momento D. Sento-me naquela cadeira -com o mesmo olhar assustado de um réu condenado à cadeira elétrica- e, de olhos fechados, ouço a primeira tesourada. A primeira tesourada marca o início de 2 penosos processos: o começo do corte do cabelo e o início da conversa de circunstância. Este é outro ponto interessante, porque a escolha da pessoa que nos corta o cabelo é também uma escolha que tem de ser cuidadosamente seletiva. Repara-se, um barbeiro tem de ser alguém da nossa confiança, não só porque está nas suas mãos a manutenção de uma grande parte da nossa imagem, como é alguém com quem temos de partilhar à volta de 40 minutos de conversa. E, se fores como eu, que vai saltando de barbeiro em barbeiro, vais ter de estar preparado para a conversa de circunstância inerente a 2 pessoas que não têm confiança entre si. Falar da escola, dos amigos, da tua vida em geral vá como se tratasse de uma daquelas reuniões de família com tios que já não vês há mais de 10 anos. Atenção, nem tudo é mau, é que este pequeno detalhe deu-me uma vantagem enorme para lidar com este tipo de conversas vazias e desinteressantes. Hoje em dia, sou capaz de fazer conversa fiada desde a empregada do balcão, onde vou pedir comida, até o mais falador Uber que me calhou naquele dia. Mas a que preço? Quantas histórias constrangedoras ouvi de um pobre barbeiro que, ao ver um jovem de 20 anos, se identificou com o seu velho ele e ia comigo desabafando histórias do seu passado. Quantas vezes respondi, timidamente, quando a pergunta era relacionada com as minhas conquistas amorosas e seguia ele mesmo a conversa dizendo “Pois, eu no meu tempo…”. A que custo ganhei esta ferramenta social?, pergunto eu. E até que ponto é ela assim tão útil?

A resposta a essa pergunta, não sei, mas a certeza que tenho é que estas traumatizantes experiências faziam-me adiar a ida ao barbeiro, tanto que acabei por deixar crescer o meu cabelo a um ponto que os meus amigos, carinhosamente, apelidaram-me de “Prince Charming”. Sempre tremi quando a minha mãe, pai, avó ou avô, dizia que o cabelo estava a ficar grande demais e que, se calhar, era altura de o cortar, porque, no fundo, sabia que eles estavam certos. Até que um dos meus melhores amigos decide que quer tirar um curso de cabeleireiro, um dia que eu guardo com muito amor no meu coração, não só porque ele agora trabalha num estabelecimento a sério, e porque está a cumprir o seu sonho e tal, mas principalmente por mim. Sobretudo por mim. Agora vou ao barbeiro contente e feliz, contar piadas, ouvir histórias da semana dele e desabafando, com todo o gosto, sobre a minha. Enfim, a única diferença entre um café e está nova definição de “cortar o cabelo” é que lá não há cerveja.

No fundo, este pequeno texto culmina num sentimento de alegria, e tudo o que foi referido acima não passa de uma descrição de tempos longínquos e ultrapassados. Hoje em dia, todo o processo de cortar o cabelo é algo fácil e agradável, e o dinheiro que gasto a fazê-lo passou a ser um investimento na carreira de um amigo. Melhor só mesmo se ele cortasse bem.

Artigo da autoria de José Miguel Dantas

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