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Artigo de Opinião

Fraude nas Eleições

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A fraude é o Brasil.

Eu ainda tinha esperança de que Bolsonaro sofresse uma derrota esmagadora. Os resultados das pesquisas eram animadores. Os institutos de pesquisa mais confiáveis apontavam que Lula teria uma grande chance de ganhar no primeiro turno e que Bolsonaro teria menos de 40% dos votos. Isso seria um progresso excelente, considerando-se o histórico brasileiro. Mas, após a apuração do primeiro turno, percebi que cometi um erro fatal: criei expectativas e subestimei um grupo ignorante e volúvel.

Alguns podem pensar que, por Lula ter 48% dos votos válidos, o resultado foi positivo, posto que restam apenas 2% para vencer no segundo turno e é improvável que parte dos votos de terceira via não vá para o PT. Contudo, essa ilusão disfarçada de esperança esquece o principal problema para o futuro do Brasil: cinquenta milhões votaram no Bolsonaro.

Cinquenta milhões de pessoas apertaram dois dígitos que legitimam um pensamento fascista. Um pensamento que vem sendo desenvolvido há décadas e que é a antítese do Brasil, cujo pilar central é seu complexo amálgama cultural. Um pensamento que busca emular a cultura esquizofrénica estadunidense de segregação, armamento e exploração.

Uma ideologia arcaica, perversa e odiosa perturba a mente desses cinquenta milhões, escondendo-se por trás de um discurso religioso e familiar. Disseminada por elites agrárias, garimpeiras, clericais, milicianas e comerciais ao longo dos séculos, ela manipula uma classe média cultural e economicamente pobre, volúvel. Faz do Brasil um país hipócrita e contraditório. O brasileiro vive uma ilusão de que faz parte de uma grande pátria cristã unida, mas, no fundo, vive (n)uma fraude.

Tamanha a fraude, que, pela primeira vez em quatro anos de governo, parte desses cinquenta milhões tem se afastado de Bolsonaro, “em nome da família”, por conta de um vídeo gravado em 2018 e que veio à tona agora, embora o acontecimento já fosse de conhecimento público há anos.

Não, não é nesse vídeo que Bolsonaro admite ter copulado com galinhas. Também não é nele que Bolsonaro diz a uma mulher que “não a estupra porque não merece”. Não é no vídeo em que ele diz que negros são pesados em arrobas, não é no vídeo em que ele é homofóbico e nem no que ele diz que não é coveiro, após ser “questionado” sobre o número de mortos por Covid-19. Também não é no vídeo em que ele homenageia um torturador publicamente, desmente a crescente destruição da Amazônia ou faz do Brasil uma piada a nível internacional. Não. Claramente, nada disso é relevante.

O vídeo que está a ameaçar toda a campanha de segundo turno de Bolsonaro tem que conter algo muito pior do que ele já disse ou fez, não é? O que seria tão hostil aos valores da família cristã brasileira? Talvez algum que mostre atos de pedofilia, estupro? Não, isso é só o que chamam de terça-feira na Igreja.

Só mesmo um discurso na maçonaria para abalar uma campanha.

Exatamente, um discurso na maçonaria. A primeira vez em que Bolsonaro é criticado por sua base eleitoral desde 2018 é por conta de um discurso na maçonaria. Isso revela algo que ainda não sei se é cómico ou trágico, mas é factual: para o eleitor médio de Bolsonaro, o ódio a minorias, os discursos patéticos, a administração displicente e genocida, a corrupção e a recessão económica não importam. Mas opor-se aos grandiosos valores da família cristã brasileira, mesmo fazendo um mero discurso conciliador e político, é o limite. Isso é o imperdoável. Por isso o Brasil é uma fraude: cinquenta milhões, um quarto da sua população, não deixa de ser.

Ser, verbo aqui isolado e na sua forma intransitiva, porque esses cinquenta milhões aderiram a uma forma de fascismo que não tem precedente, não tem um nome. É um fascismo autofágico: o eleitor de Bolsonaro esconde-se atrás do valor risível de “família cristã” para perseguir a diversidade étnica e religiosa que é a raiz da identidade da própria cultura brasileira. O fascismo tradicional, e as diversas variantes de pós-fascismo, fizeram e fazem até hoje o uso da identidade cultural do grupo e exacerbam-na, de forma a destruir outras identidades. O fascismo de Bolsonaro e o seu eleitor faz o contrário: faz com que o brasileiro destrua aquilo que é inerente a si próprio. Por isso é inominável: não é possível dar nome a tamanha irracionalidade.

Esse fascismo inominável precede Bolsonaro. O termo bolsonarismo, ao qual muitos dizem que irá transcender o atual presidente (e.g: o bolsonarismo não acaba com a saída de Bolsonaro), é muito generoso com o seu legado. Bolsonaro nada mais é do que a incorporação dos valores odiosos desse fascismo inominável, mas não foi ele quem os criou, muito menos quem os disseminou – Bolsonaro apenas fez com que o brasileiro que temia as consequências de manifestar esse ódio percebesse que o seu medo era irracional, pois numa terra sem lei, não há crime.

Sem lei porque o Brasil nunca aprendeu com a história para proteger o seu povo – deixa as suas feridas abertas, sangrando lentamente. Abolição da escravatura? Joguem os negros para as favelas, digam que têm direitos iguais e não tomem nenhuma medida de correção histórica para que sejam efetivamente iguais. Redemocratização? Instaurem leis de anistia similares às da Espanha para proteger os torturadores. As feridas não cicatrizam; o Brasil não para de sangrar.

E é assim, sangrando lentamente, que o Brasil será levado ao fundo do poço pelo fascismo inominável. Cinquenta milhões de pessoas extrapolam o seu ódio inerente à própria cultura e identidade e disfarçam-no num discurso religioso e familiar, fazem do Brasil uma fraude. Uma fraude que sangra há décadas e que ainda há de sangrar.

Porém, chegamos a um impasse: se ainda há de sangrar e, principalmente, se já sangra há décadas, é válido temer que esse fascismo inominável seja, na verdade, um protofascismo? Seria ele um precursor de um fascismo legitimado, não mais por meros discursos intolerantes, mas por uma soberania estatal? Estaria o pior ainda por vir?

Não podemos arriscar descobrir a resposta. Óbvio que pode ser feito um estudo genealógico mais aprofundado dessa intolerância no Brasil, mas o resultado demonstraria uma intermitência de ideologias protofascistas seguidas por governos fascistas que, por terem características específicas, não são integralmente comparáveis ao (proto)fascismo que vemos atualmente. Passamos, afinal, por dois períodos de ditadura desde a independência. Logo, devido a essa oscilação, o que importa neste momento é perceber que, em algum ponto, o protofascismo deixou de ser “proto”.

Assim, esse inominável pode ser um fascismo contínuo, presente no contexto político e cultural brasileiro desde sempre e que, portanto, é inerente ao Brasil, ou pode ser uma premissa para que seja novamente ameaçada a democracia. Ambas as possibilidades são igualmente aterrorizantes. Por isso, não é hora de brincar, pois o perigo é iminente. Bolsonaro tentará fraudar o que já é fraudulento. Protofascista ou fascista, a ideologia do seu eleitorado sempre esfregará o sal na ferida, que não demonstra sinais de melhora.

É por isso que, mesmo sendo a pior opção de esquerda para o Brasil nestas eleições (incorpora diversos elementos neoliberais no seu plano económico, faz concessões fiscais a bancos, não propõe uma reforma agrária efetiva, etc.), Lula ainda é a melhor opção, mas por exclusão. Grande parte dos seus eleitores votam, não por conta das suas políticas, mas pela oposição que representa a Bolsonaro. Lula, assim, não é a brasa quente capaz de cauterizar a ferida, mas uma gaze bem pressionada que evita a hemorragia fatal.

Artigo da autoria de Olavo de Freitas

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