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Artigo de Opinião

O que é a Filosofia?

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Já que este é um Jornal Universitário – e já que na Universidade do Porto existe um curso de Filosofia – e já que a Filosofia está na raiz do conceito de Universidade – sendo eu estudante de Filosofia, proponho uma pequena reflexão sobre “o que é a Filosofia”.

Quando tentamos explicar a uma criança o que é a Medicina, o que fazemos? Dizemos o que fazem os médicos. Pois bem, tentarei adoptar um método semelhante. O que fazem, então, os filósofos? Esta é uma pergunta muito traiçoeira. Filósofos diferentes fazem coisas muito diferentes. Vejamos alguns exemplos dessas diferenças.

Alguns filósofos, ditos “racionalistas”, acreditam que podemos saber coisas relevantes sobre o mundo pelo uso exclusivo da razão. Esse filósofos, então, tendem a fazer “filosofia de poltrona”, isto é, tendem a sentar-se e reflectir, procurando respostas dentro das suas mentes. Normalmente colocados em oposição a estes, existem alguns filósofos chamados “empiristas”, que acreditam que a razão, sozinha, não pode dizer nada de relevante sobre o mundo: precisamos de o experienciar. Estes, então, tendem a sujar pelo menos as pontas dos dedos.

Algumas correntes filosóficas vivem de um esforço contínuo de diferentes pessoas, que discutem entre si – seja ao vivo, seja pela escrita de artigos –, corrigindo-se e apoiando-se constantemente. Outras, pelo contrário, tendem a sobreviver mais pelo aparecimento de grandes “génios”, que escrevem obras volumosas e densas, que vão sendo clarificadas e interpretadas por filósofos posteriores.

Alguns filósofos confiam plenamente na capacidade das ciências modernas e por isso incorporam constantemente os resultados das mesmas nos seus sistemas filosóficos. Outros, em contraste, têm uma certa desconfiança pela ciência moderna e por isso tendem a desenvolver sistemas que não são, nem verificáveis, nem falsificáveis pelas últimas descobertas científicas.

De uma maneira mais extrema, alguns filósofos são confiantes nos poderes da razão humana, enquanto outros desconfiam constantemente da mesma. Assim, os primeiros tendem a procurar sistemas de pensamento que abarquem toda a realidade, enquanto os segundos se contentam em explicar coerentemente alguma fracção da mesma.

Espero, com estes exemplos, ter explicado a inviabilidade de uma tentativa de expor o que é a Filosofia com base naquilo que os filósofos fazem. Karl Marx, que procurou mover as massas, foi um filósofo; Ludwig Wittgenstein, que queria somente compreender o mundo, pouco importado com a opinião dos demais, foi também um filósofo. Descartes, querendo fundar todo o conhecimento a partir da sua cabeça, era filósofo; e Tomás de Aquino, confiante na tradição que recebeu e na capacidade dos sentidos, também o era.

Mas a pergunta urge – o que é a Filosofia? Procurarei, então, outro caminho.

Há quem tente uma resposta etimológica: “a Filosofia é o amor pela sabedoria”. Isso, claro, é verdade, quer etimologicamente, quer de facto. Porém, também um bioquímico, ou as nossas avós, pode amar a sabedoria. Mas não lhes chamamos filósofos. A resposta etimológica, então, diz alguma coisa, mas, ainda assim, diz muito pouco. É, aliás, uma acentuação desta resposta que nos leva a achar que todos os pensadores são filósofos.

A resposta que vou propor é uma resposta pessoal. Por ser pessoal, é circunscrita. Existem certamente pessoas que se consideram filósofas, e até pessoas que são comummente consideradas filósofas, que cairão fora desta definição. Mas é para isso mesmo que serve uma definição – para de-finir, para desenhar um fim, uma linha que distingue o que é e o que não é filosofia. Fica, assim, dado o aviso: muitos pensadores, a meu ver e segundo a definição que em breve esboçarei, não são filósofos. Isso não significa que não sejam bons pensadores! Jordan Peterson, por exemplo, é um óptimo pensador; mas não é um biólogo. E também não é um filósofo. Se não tivermos o coração na garganta quanto a estes assuntos, dizer que Fulano ou Sicrano não são filósofos não é um insulto; não é sequer um “juízo de valor”; é, isso sim, um juízo de facto. Vamos, então, a isso.

Tinha já sido dito por Aristóteles – e tornou-se opinião comum entre os filósofos dos séculos XII a XVII – que os homens podem ter virtudes e vícios. Virtudes e vícios são “hábitos”, que não significam rotinas, mas disposições estáveis, ou seja, uma capacidade fortalecida para agir de determinada maneira. A virtude da coragem, por exemplo, é uma capacidade fortalecida, uma tendência estável, para realizar feitos corajosos; já o vício da desonestidade é uma tendência estável para mentir. Vícios e virtudes são hábitos; mas os vícios são hábitos maus, enquanto que as virtudes são hábitos bons. Um hábito diz-se bom quando aperfeiçoa a pessoa – quando a faz mais ou melhor pessoa – e mau quando a corrompe.

Além destes vícios e virtudes “morais”, existem também vícios e virtudes intelectuais. Uma dessas virtudes chama-se “ciência”. Propriamente falando, a ciência não é uma virtude, mas um tipo de virtudes. Por outras palavras, existem muitas ciências. Em geral, a ciência é a virtude que nos permite conhecer algum tipo de coisas – por exemplo, a ciência que nos permite conhecer o que significa “estar vivo”, ou o que é o movimento.

A Filosofia é uma ciência. É a ciência que estuda “o ser enquanto ser”. A ideia aqui é que todas as ciências têm um objecto material e um objecto formal, isto é, um objecto que estudam e uma perspectiva segundo a qual o estudam. Tomemos dois exemplos: a Sociologia estuda o ser humano (objecto material) enquanto ser social, ou seja, na medida em que se relaciona com outros seres humanos (objecto formal); já a Psicologia, que também estuda o ser humano (o mesmo objecto material), estuda-o enquanto ser psicológico, ou seja, na medida em que é capaz de ser crenças e volições (objecto formal). A Filosofia estuda todos os seres ou entes (objecto material), na medida em que são ou existem (objecto formal).

Isto, claro, é extremamente abstracto. Mas ser abstracto não é uma coisa má: qualquer tipo de ciência precisa de algum grau de abstracção. No nosso dia-a-dia, lidamos com o Tareco e o Pantufa; mas o biólogo terá de se abstrair deste e daquele gato, para considerar e estudar o gato em si mesmo, ou o gato enquanto tal, ou a gatidade. Também o matemático se deverá abstrair se são dois gatos, dois rins ou dois quilogramas, para poder estudar o dois enquanto tal. O que a Filosofia faz é, simplesmente, dar mais um passo nesse processo de abstracção. Vejamos a coisa assim: o meu nome é Gonçalo e imaginemos que o leitor se chama Rogério. Ambos somos diferentes, mas ambos somos seres humanos – e isso significa que partilhamos uma série de características comuns, que vale a pena serem estudadas. Não são características apenas físicas e biológicas, mas também psicológicas e imateriais. Agora consideremos o Rogério e o seu cão. Mais uma vez, são ambos muito diferentes, mas ambos têm algo em comum – ambos são animais, e por isso partilham algumas características comuns, como serem capazes de desejar e de teres conhecimento sensível, além de uma série de propriedades físicas e biológicas. Tudo isso merece ser estudado. Ora, entre o Rogério e uma macieira está uma diferença ainda maior, mas ainda existe muito em comum, nomeadamente o facto de ambos serem seres vivos. O significado de ser um ser vivo, claro, é algo que vale a pena estudar. Veja o leitor que o que estou a tentar fazer é progredir em graus de abstracção: vamos progressivamente considerando categoriais mais universais segundo as quais o Rogério (o qual serve apenas de exemplo) pode ser considerado. O último estádio desta progressão, o último degrau, seria o ser: o Rogério e uma pedra, ambos são; o Rogério e uma brisa, uma pedra e algo de imaterial, ambos são. Ora, tal como a semelhança entre dois seres humanos merece ser estudada, os filósofos têm a convicção de que também o ser, também aquilo que é comum a todos os entes, aquilo que significa existir, também isso merece ser estudado. E é isso que os filósofos estudam: os entes na medida em que existem.

A não ser que já tenha estudado filosofia, o mais provável é que o leitor esteja a contactar com estas ideias pela primeira vez. Como será evidente, a sua tendência será para achar esta definição demasiado restrita! E, claro, tem razão. Aquilo que descrevi até agora é, propriamente falando, a Metafísica ou Ontologia, a qual é comummente chamada “Filosofia Primeira”. Enquanto a Metafísica é em si mesma uma ciência que pode e deve ser estudada, pode também, e deve, ser aplicada. De maneira análoga, a Matemática é uma ciência e deve ser estudada, mas deve também aplicada, e daí surgem a Física Moderna e a Economia, entre tantas outras. Assim, à medida que aplicamos a Ontologia a problemas particulares, entramos no domínio de outras “disciplinas filosóficas”. Se nos perguntarmos, por exemplo, “o que é o Conhecimento”, entraremos no domínio da Gnoseologia ou Epistemologia; se nos perguntarmos “o que é o Ser Humano”, entraremos no domínio da Antropologia; se nos perguntarmos “como devemos viver”, estraremos no domínio da Ética ou Moral; se nos perguntarmos “o que é estar vivo”, entraremos no domínio da Psicologia; e por aí em diante.

Esta aplicação da Metafísica, claro, já nos abre o leque da Filosofia. Não é filósofo apenas aquele que se pergunta “o que é o ser”, mas também aquele que se pergunta qual o sentido da vida, a diferença entre bem e mal, a possibilidade de conhecer, etc. Daqui, como já poderá o leitor ter notado, nasce uma dificuldade: como assim a Psicologia é uma disciplina Filosófica, e também a Antropologia? A questão joga-se, precisamente, na metodologia adoptada. Veja: nem todos os que se perguntam se o conhecimento é possível são filósofos. Nem sequer todos os que, para além de se perguntarem, tentam responder à pergunta! São filósofos apenas aqueles que procuram responder à pergunta segundo o método filosófico. É assim com todas as ciências: nem todos os que se questionam acerca do movimento de objectos materiais são físicos: apenas aqueles que seguem uma determinada metodologia, própria da Física.

A pergunta que se seguiria, então, é “qual o método filosófico”. É uma pergunta legítima, e estritamente necessária para responder à questão “o que é a Filosofia”. Este texto, porém, já vai longo, e não poderemos analisar a questão aqui. Em linhas breves, a coisa joga-se no uso da Lógica e da Experimentação Empírica como ferramentas indispensáveis. O que é característico da “boa filosofia” é o chamado “realismo crítico”, que procura analisar a realidade através de um uso rigoroso da razão humana. Como pressuposto, claro, está que o mundo é “inteligível”, isto é, que não se trata de um aglomerado sem sentido, mas de algo ordenado e que podemos conhecer.

Infelizmente, hoje teremos de ficar por aqui. Fico com a esperança que o leitor tenha ficado com um pequeno interesse pelo assunto, e que talvez até pegue num livro de Filosofia, abra e leia. Afinal, “o que é a Felicidade”, “o que é a Beleza”, “qual é o sentido da vida” são tudo questões que vale a pena colocar-nos. Como dizia Fulton Sheen, o difícil não será encontrarmos uma resposta, mas viver segundo a mesma.

Artigo da autoria de Gonçalo Costa

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