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Opinião

Racionalidade e Estupidez

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A Ciência Contemporânea, segundo Karl Popper, vive, já não do famoso “método indutivo” de Bacon, mas do “método crítico”. O grande Aristóteles escrevera o ilustríssimo livro Órganon, no qual expusera as principais leis da Lógica Formal. Como ensinou este magnânimo filósofo de Estagira, a dedução é uma forma de inferência (isto é, uma forma de passar de premissas a uma conclusão, ou seja, de passar de algo em que já acreditamos para algo em que ainda não acreditávamos) que parte de premissas universais para uma conclusão particular. O exemplo clássico é famosíssimo:

Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.

A dedução opõe-se à indução, que é outra forma de inferência, a qual foi preferida por Francis Bacon quando escreveu o seu livro menos ilustre, mas ainda assim incontornável, Novum Organum. A inferência indutiva passa de premissas particulares para uma conclusão universal. Assim, por exemplo:

Estes cem mil cisnes são brancos.
Logo, todos os cisnes são brancos.

Há duas coisas que se devem notar nestas inferências, e que justificam as preferências de Aristóteles e de Bacon. Como o próprio leitor há-de ter reparado, a inferência dedutiva é certa, enquanto a indutiva é apenas probabilística. Quer isto dizer que, se o argumento dedutivo for válido (isto é, se estiver logicamente bem construído), tendo as premissas, terá a conclusão verdadeira. É esse o caso do exemplo dado. Já a indução, pelo contrário, não goza desse privilégio: por muito verdade que seja a premissa – e ainda que a mudemos para, em lugar de “cem mil”, dizer “cem mil milhões” -, a conclusão pode ser falsa. Tanto pode, que é. Esta é uma vantagem indubitável da dedução sobre a indução.

Mas também a indução tem uma vantagem sobre a dedução: é que a indução (se a sua conclusão for verdadeira) produz conhecimento. O que quer isto dizer? Quer dizer que, numa dedução, já sabemos a conclusão. Não a sabemos explicitamente, é certo, mas sabemo-la implicitamente. Ou, como diria Aristóteles: não a sabemos em acto, mas sabemo-la virtualmente, isto é, em virtude das premissas. Mas o mesmo não acontece na indução!

Assim, Aristóteles preferiu basear a empresa científica na dedução, buscando uma ciência que fosse certa. Já Bacon optou por uma ciência provável, mas útil. Não seria possível combinar os dois?

 

Karl Popper tentou. No seu método crítico, procurou retirar a indução da empresa científica. Como? Trocando a noção de “verificação” por aquela de “falsificação”. Veja: “Todos os cisnes são brancos”… será que são? Nunca ninguém viu todos os cisnes. Segundo o método indutivo, o trabalho do cientista seria procurar cisnes brancos todos os dias e verificar que são realmente brancos. Segundo o método crítico, porém, o trabalho do cientista é quase masoquista, mas bem mais interessante: encontrar um cisne que não seja branco. Se não encontrar, dirá que a sua teoria original (todos os cisnes são brancos) é uma boa teoria; se encontrar, então deverá deitar fora a sua teoria e fazer uma nova. Veja aqui o ponto: o cientista, segundo Popper, nunca poderá saber que acertou, mas, se for o caso, saberá que errou.

 

O que tem tudo isto a ver com o título, “racionalidade estúpida”? Aristóteles disse que o homem é um animal racional, e não lhe faltava razão. Essa descoberta, porém, não seria possível, nem pelo método indutivo, nem pelo método crítico. Não seria possível saber, pelo método crítico, que o homem é racional porque, infelizmente, há muitos homens irracionais. Há muitas bestas bípedes. Basta assistir ao documentário de Matt Walsh, What is a Woman?, e, melhor ainda (ou pior, dependendo do ponto de vista), a secção de comentários.

Mas também o método indutivo não resultaria. Porquê? Porque, como diria Popper, o método não funciona; confirmaria apenas que a amostra analisada é composta por animais racionais — mas não concluiria (não poderia!) que todos os homens são racionais.

Apenas o método aristotélico nos permite saber, com certeza, que todos os homens são animais racionais — mesmo os terraplanistas. Que todos o sejam, sabemos por intuição; que os terraplanistas também o sejam, por dedução. “Por intuição”, o que quererá isso dizer? O seguinte: quem quer que olhe para um ser humano, por muito estúpido que ele seja, percebe que ele é racional. Não só que aquele espécime o é, mas que toda aquela espécie o é. Por outras palavras, não há inferência, não são precisas premissas para a conclusão: vemos um ser humano, até mesmo um deputado, e percebemos que é um ser racional.

Alguns filósofos quiseram rejeitar a indução. “Não a podemos verificar”, diziam. Depois veio David Hume, e decidiu livrar-se da indução também. Aqui está um caso de estupidez absurda. Segundo David Hume, em poucas palavras, a justificação da indução é:

Estas cem mil induções funcionaram.
Logo, esta próxima indução funcionará.

Isto, nota Hume, é um raciocínio circular. Não pode ser. Tudo o que nos resta é a dedução. O que Hume não se questionou (ou, pelo menos, não deixou por escrito) foi o que justifica a dedução. Se não há indução, nem intuição, eis a resposta:

Todas as deduções estão justificadas.
Isto é uma dedução.
Logo, isto está justificado.

Quem tem olhos veja. É uma falácia, mais do que ridícula, chocante. O que quer isto dizer? Quer dizer que a única forma de justificar a racionalidade é a intuição. Sem aceitar a intuição como método válido de conhecimento — ainda que seja preciso restringi-la, regulá-la, etc. —, não é possível justificar o conhecimento.

Foi isso mesmo que aconteceu com a pós-modernidade: não há conhecimento, só opinião; não há objectos, só sujeitos; não há verdade, tudo é fluído.

 

Ora, a minha cadela, costumo eu dizer, “é estúpida”. Mas ela, pateta como é, não é estúpida. É, simplesmente, irracional. Parece, então, que estúpidos são os pós-modernos, e ainda assim racionais.

Artigo da autoria de Gonçalo Costa