Artigo de Opinião

Rotina

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Começarei este texto com uma anedota. O póstumo Pelé disse em 2005 que Romário, herói da Copa de 1994, deveria se aposentar. Em resposta a Pelé, Romário disse, delicadamente: “O Pelé calado é um poeta. […] O Pelé a gente já sabe que só fala m*rda. […] Ele tinha que colocar um sapato na boca”.

E, após ler e assistir a diversas entrevistas, é com essas palavras que digo, similarmente: o bispo José Ornelas calado é um poeta. Mas, infelizmente, não podemos nos deliciar em sua poesia, pois ele foi designado com a grande responsabilidade de ser o porta-voz da Igreja em mais um momento de crise.

Tarefa delicada, já adianto. Não deve ser fácil defender uma instituição que foi pilar, ao redor do mundo, de processos de genocídio cultural, golpes de Estado, governos fascistas, massacres, entre outros. São exigidos níveis de ginástica mental avançados para exercer tal função. Porém, esses são crimes do passado, porque a Igreja já é consolidada o suficiente para que isso seja visto como passado. Então, por enquanto, o bispo José Ornelas só precisa ajudar a Igreja a combater as alegações de estupro e pedofilia. Ou seja, nada que a demagogia eclesiástica já não faça há… Quanto tempo?

Pois, eu realmente não sei. Em uma aliança tão eterna quanto o próprio tempo, parece-me que sempre houve uma relação muito forte entre a Igreja e o abuso. Contudo, José Ornelas, aparentemente, contesta essa noção. Quando questionado, em entrevista ao Expresso, sobre o que tinha a dizer aos jovens que hesitassem em participar da Jornada Mundial da Juventude por conta dos casos de abuso, Ornelas disse:

“Não me preocupo nem deixo de me preocupar. A Fundação JMJ tem um acordo de parceria com a APAV para serem eles os responsáveis pela segurança nesse campo. Mas não posso embarcar nessa ideia, a Igreja não é um antro de pedofilia. Agora é preciso estar atento, porque numa concentração de jovens não ter esse cuidado é que seria mau.”

É incrível como uma resposta consegue revelar tanto sobre um discurso. Primeiramente, Ornelas consegue não responder aos jovens, como a pergunta indicava; quer apenas que a Jornada aconteça. Depois, terceiriza a responsabilidade quanto à segurança dos jovens. Por fim, faz uma das afirmações mais hediondas possíveis.

“A Igreja não é um antro de pedofilia”. Era muito melhor nos abençoar com sua ensurdecedora poesia do que dizer isso. Após 512 testemunhos de abuso sexual, após a Comissão Independente ter calculado um mínimo de 4815 vítimas e apenas nas últimas décadas em Portugal, dizer isso é cuspir na cara das vítimas. É cuspir na cara de quem teve a coragem de testemunhar os anos de trauma causados por múltiplas pessoas que trabalhavam (e ainda trabalham!) na mesma instituição que o exímio senhor Ornelas defende.

Apenas um estupro, um ato de pedofilia, já faz de um local um antro de pedofilia. Um. Quase cinco mil casos fazem da Igreja uma instituição de crime organizado. Mas sabemos muito bem que ela, sob a proteção da taxonomia de “instituição religiosa”, que é algo que aparentemente permite que tudo aconteça lá dentro, nunca será vista dessa forma.

Por isso, é preciso fazer algo. É preciso encontrar alguma explicação estrutural para esses abusos. É preciso encontrar alguma solução.

Sabemos que na Igreja o padre tem, simbolicamente, uma autoridade sobre os fiéis. Por mais que todos que estejam naquele ambiente sejam considerados súditos de Deus, o padre comunica a sua vontade, enquanto os fiéis escutam. Há claramente uma hierarquia, e isso leva a uma diferença na relação de poder padre-fiel, que pode levar a conflitos quanto aos direitos que aquele pensa que tem sobre esse. Porém, há algo ainda maior. O padre prega o evangelho. Delineia, dissemina e semeia o discurso de Deus. E esse discurso tem um poder enorme, mas que exige um sacrifício: a expressividade sexual do padre.

Reprimida, agoniza por liberdade. Se hoje o sexo é um tabu no Ocidente, é por conta de toda uma racionalidade construída em cima da noção de que a busca pelo prazer mundano é perversão, uma ambição ameaçadora, digna de ser punida. O sexo, o prazer profano, o pecado carnal, passou a formar uma dicotomia com a castidade, punição do mundano, mas orgasmo astral. E, como a mais rasa leitura foucaultiana revela, essa repressão enfrenta uma força reativa ainda maior. A castidade busca limitar e restringir, mas isso só incita o desejo. O padre frustrado, então, busca expressar sua sexualidade da forma que puder: suas vítimas não são aquelas pelas quais terá de lutar, impor-se fisicamente. São coagidas. A hierarquia padre-fiel, o discurso mistificado e justificado por Deus, as impede de resistir. O padre frustrado exerce seu poder eclesiástico, mas contesta o dogma ao expressar-se sexualmente. Afirma-se como aquele que está no controle, entende que ao contestar o dogma, consegue expressar-se por completo. Pouco lhe importa se essa expressividade destrua a expressividade dos outros.

Grande parte dessa repressão do desejo, dessa representação do sexo com significante pervertido, tem sua matriz em Santo Agostinho, mas isso não vem ao caso agora. Atribuir um dogma problemático a um indivíduo póstumo não é útil para além de descobrir a origem de sua problematicidade, é preciso contestar o problema no agora. Óbvio que deixar de impor o celibato e a castidade não impede que ainda haja abusos, mas ainda se espera que a Igreja se adapte aos tempos modernos. Que entenda que a repressão da sexualidade torna muito mais difícil disseminar os valores que diz querer disseminar. Que faz chorar almas, para além das de seus padres.

Mas, para Ornelas, não é assim.

Quando questionado quanto à possibilidade do celibato ser uma das causas dos abusos sexuais, o senhor Ornelas disse que “se assim fosse, não tínhamos papás e mamãs abusadores.” O bispo afirma o dogma ao relativizar o problema, por mais que, logo em seguida, tente dar uma noção de progressividade ao dizer que gostaria de ver a ordenação de padres casados. Novamente faltou, para a surpresa de ninguém, sensibilidade para com as vítimas ao relativizar o problema, mas desta vez trabalha de forma muito curiosa o dogma da Igreja.

O bispo, com o exemplo que deu, conseguiu separar a noção de celibato da noção de castidade. Sim, moralmente falando, a castidade é independente do celibato. Uma pessoa pode ser sexualmente ativa sem engajar-se no matrimônio, assim como pode estar casada e ser casta. Contudo, o bispo foge do problema, prendendo-se numa tecnicalidade semântica, mas não eclesiástica: o Código de Direito Canônico implica que o celibato e a castidade, entre os padres, são mutuamente dependentes (Cân. 599). Tão dependentes que se encontram nas descrições do índice uma da outra, ao fim do Código. Portanto, o celibato, enquanto problema, não deve ser discutido sem ser discutida também a castidade. Mas é muito fácil prender-se a uma tecnicalidade quando ela evita lidar com uma problemática grave. É muito fácil relativizar e afirmar o dogma, mesmo que pareça contestá-lo. Porque o dogma é essencial para a Igreja.

Porque sem ele, sem a afirmação de sua ancestralidade, de sua moralidade própria, a Igreja não é. Não se firma na modernidade. Agarra-se, como à corda faz desesperadamente o náufrago na esperança de se manter vivo, a seus valores identitários únicos, mas que ferem a sua existência no agora. A fala do bispo, aqui, revela que a inflexibilidade da Igreja não é ignorância, mas sobrevivência.

Contudo, o bispo Ornelas decidiu que ainda não deixara tão óbvia a sua busca pelo “vazio” discursivo. Vazio entre aspas porque de vazio não tem nada: é na sua incoerência que diz muito. Tem por objetivo dizer um grande nada, para que nele busquemos algo. Assim, Ornelas decidiu que ia tocar em algo que vai além da castidade e do celibato. Toca na sexualidade, e não na ausência de sua prática.

Em outra fala, e agora em resposta à afirmação do entrevistador, que, claramente impaciente, retrucou o bispo ao dizer que o celibato ainda “pode ser uma causa”, Ornelas disse: “Eu sou heterossexual e não ando a deitar-me por aí assim de qualquer jeito”.

Eu diria que, se é que se pode dizer isto em um texto com uma temática tão sombria, é aqui que se encontra o alívio cómico da entrevista. Ao insistir com a sua resposta na diferenciação (novamente, baseada apenas em tecnicalidade semântica) do celibato e da castidade, o bispo conseguiu a proeza de mencionar a sua heterossexualidade.

Ora, qual é a reação que espera que tenhamos? “Parabéns”, “e se ele fosse homossexual? Deitar-se-ia?”, ou talvez “isso quer dizer que ele se deita por aí, mas não de qualquer jeito”? Afinal, o que ele quis dizer ao dizer que é heterossexual? Que não é casto, mas pratica o celibato? Isso não deveria ter a menor importância. Pois qual seria a utilidade de mencionar sua sexualidade, se ela própria é inibida, se o desejo não pode ser manifestado? Se ele é manifestado, se Ornelas seguir o celibato e não for casto, então não deveria ser bispo em primeiro lugar, posto que isso vai contra o atual dogma eclesiástico. Mas o bispo não se sabotaria assim. Qual foi, então, o objetivo de dizer isso?

Nada.

É justamente isso que o bispo quer, esse é seu cenário ideal. Porque ao desviar da pergunta com uma resposta absurda, traz um discurso superficial, “vazio”, que encobre o discurso principal: o bispo não quer responder, porque não precisa responder. Em outra entrevista o bispo disse que não poderia ser feita “uma caça às bruxas” aos padres suspeitos, quando foi a própria Igreja que fez a verdadeira caça às bruxas e nunca assumiu responsabilidade; os vazios se expandem, transcendem o discurso da Igreja, atingem o nosso subjetivo, desviam o foco do verdadeiro problema: os abusos não vão parar.

Os abusos não vão parar porque a Igreja não vai cessar de existir, de ser. De ser essa instituição que, ao transformá-lo em pecado, reprime todo o desejo de seus seguidores. De ser essa instituição que, mesmo tendo cometido uma infinidade de atrocidades ao longo da história, ainda é o pilar da moralidade da cultura Ocidental e que, portanto, não será punida apropriadamente pelo Estado, supostamente soberano, mas que no fundo é um cobarde que  se curva perante a verdadeira instituição hegemónica do Ocidente.

Assim, a entrevista do bispo se trata de algo rotineiro: assim como uma pessoa vai ao médico anualmente para fazer exames de rotina, a Igreja leva um dos seus à imprensa trimestralmente para dar declarações de rotina em tempos de crise. O check-up do corpo clerical encontra sempre sintomas de corrupção, pedofilia etc., mas basta prescrever uma dose alta de propaganda disfarçada de relações públicas, discursos “vazios” e outros distrativos por entrevista, que a dor passa.

Mas a dor das vítimas, essa não passa. Nem uma, nem mil entrevistas curam o trauma e surto coletivo que são os casos de abuso. Esse sangue a Igreja não consegue limpar de suas mãos. E é bom que o senhor, bispo José Ornelas, saiba que a sua boca, de tanto beijar as mãos da Igreja, também está ensanguentada. O senhor precisa ao menos carregar esse peso, sentir o gosto do ferro.

Artigo de autoria de Olavo de Freitas

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