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Crónica de fim de Inverno
A chuva cai incessante pelas ruas da cidade. O vento sopra, exerce uma fúria natural que empurra as árvores urbanas. O frio dança no meio dos corpos atordoados, melancólicos e apressados. A busca por um abrigo, por um local que corrompa os sintomas de um dia de Inverno, faz-se obrigação inegável.
Subitamente, um café acolhedor pintado com as cores do conforto, acena por entre a neblina. O frio espera por mim à porta, enquanto mergulho num descafeinado cheio. O ruído envolto desperta-me de imediato curiosidade. “Será que este casal, sentado na mesa vizinha à minha, está à espera da hora para ir buscar os netos à escola?”; “Aquele senhor tão solitário, a bebericar um fino, deve ser viúvo. Ou então é do exército. E se estiver aqui para matar o casal? Coitados, os netinhos estão a contar com eles!”; “A senhora que me serviu dormiu mal esta noite. O filho de seis anos deve tê-la acordado às quatro da manhã porque teve um pesadelo.”. Viajo na vaga imagem dos figurantes deste espaço e transformo-os em personagens principais. O meu descafeinado desaparece à medida que vou construindo cada uma das biografias detalhadas dos meus novos amigos, que nem a voz, nem o nome lhes conheço. Como será possível resistir à vontade de unir a minha caneta e o meu caderno numa sóbria dança, de onde sairá um pouco do meu pensar?
Já em casa, sento-me à janela. A nostalgia acena-me como já uma companhia habitual, acompanhada do conforto de uma manta. A correria das gotas faz-me lembrar os fins de tarde, igualmente chuvosos, da minha infância. Consigo até lembrar-me de alguns guarda-chuvas que tive quando era pequena, e não sabia quanto custava um, ou sequer porque é que chovia. Era bonito ver o Inverno com um olhar tão inocente e carregado de vontade de fugir para a rua e brincar à chuva, saltar nas poças de água.
Hoje, que já sei quanto custa um guarda-chuva (demasiado), o Inverno revela-se uma estação do ano com uma dimensão muito particular. O Inverno debate as ideias pesadas. O Inverno acolhe desamores. O Inverno acolhe uma melancólica, e quase obrigatória, introspeção. O Inverno aquece com luvas, cachecóis e gorros as idiossincrasias. O Inverno é amigo da escrita. O Inverno é a estação dos pensadores que precisam de tatuar ideias pesadas, desamores, introspeções e idiossincrasias numa folha de papel.
E, de súbito, um pequeno raio de sol surge nos céus cinzentos. As flores acordam do seu longo sono e pintam os relvados. As folhas preenchem as árvores outrora despidas pelo caducar da sua beleza. A Primavera sorri com os cânticos dos pássaros.
Vejo uma vontade incessante de sair de casa, de querer aproveitar os parques, os passadiços à beira-mar, e até as cidades. Sair de casa embalada pelos raios de sol e voltar apenas quando a brisa noturna já não me permita estar de manga curta.
Porém, não nos deixemos encantar pelo espírito primaveril, que chega com o final de março e com a mudança de hora. A indecisão do clima, do frio matinal para o calor do meio-dia, que nos obriga a escolher uma vestimenta diária completamente versátil; o alérgico pólen que começa a pairar no ar. Como posso eu ter criatividade para pensar nas mais belas peças se passo os meus dias a espirrar? A rinite alérgica é uma grande inimiga das crónicas. O que será das ideias pesadas, dos desamores, das introspeções e das idiossincrasias, se o seu pensador está sentado num banco, em frente à praia, a apanhar sol? O sol traz moleza no pensamento. O descafeinado quente que serve de refúgio para o dia frio, mas que acolhe os mais belos pensamentos, vai ser substituído por caminhadas pelo parque urbano mais próximo e pelos churrascos com amigos.
Pensando bem, um passeio por um jardim, perto de um pequeno lago rodeado de relva verdejante, faz florescer uma certa vontade de pegar num papel e numa caneta, e através de palavras pintar um quadro daquilo que nos rodeia. Pensando bem, não há nada mais poético do que o reflorescer da natureza. Pensando bem, o reflorescer da natureza até pode transmitir um ambiente poético a qualquer mente pensadora.
Pensando bem, todas as estações do ano são passíveis a uma criatividade interminável. Pensando bem, uma mente verdadeiramente pensadora consegue encontrar a criatividade até no mais simples cenário; consegue pensar “tenho de escrever sobre isto”. Pensando bem, o verão é o ventre da paixão, e eu tenho de escrever sobre isto. Pensando bem, o outono é um quadro a óleo, e eu tenho de escrever sobre isto. Pensando bem, Inverno seja um boneco de neve feito por uma criança, e eu tenho de escrever sobre isto. Pensando bem, primavera é um morango suculento que acaba de ser colhido, e eu tenho de escrever sobre isto.
Artigo escrito por Rita Vila Real
Fotografias analógicas por Inês Aleixo