Artigo de Opinião
Camões v. Billie Eilish
Parece estranho colocar dois vultos culturais separados por mais de 400 anos numa mesma frase. Clássico versus contemporâneo. Dir-me-ão que inusitada comparação não terá lugar em qualquer compêndio cultural, porventura quase redutora de um nome maior da literatura universal.
Mas o que é um clássico? Se este corresponder a uma fotografia do universo, conhecê-lo dá-nos uma imagem do seu tempo. Apesar de todos vivermos no mesmo cosmos, quanto mais fotografias tiramos, mais os clássicos parecem-nos obscuros. Tal como não damos conta do passar dos dias, pensamos que os conhecemos por ouvir falar deles. Qual Síndrome de Mandela, cujo reflexo nos semicerra os olhos.
Seja um erudito classicista ou um fã de pop alternativo, ambos conhecem a realidade pelo seu contacto. O poder quase lascivo do provocador toque da arte é o maior pulso da dinâmica da consciência do presente. Presente, porque o tempo legitima os criadores, forma elementar da expressão de um povo e verdadeiro talismã guardando os espelhos do tempo. Por isso Billie é um clássico do presente. Porque o tempo deu forma ao culto, catalisador das ideias e valores de uma geração.
Longe deste argumento está a cisão etária das preferências do público. Sim, Billie pode ser um clássico para os jovens. E sim, também conhecemos-lhes o seu persistente desinteresse em Camões. Sabem da sua existência, mas abstêm-se de o ler. Não se reveem num Portugal glorioso desatualizado, cujas palavras embaciam o seu retrovisor. Uma pusilânime atitude, em que os jovens anseiam pelo seu destino, convertidos em desenfadamentos sobre como lá chegar.
Mas também, para quê olhar para trás com tantos problemas para resolver hoje? Aqueles jovens, encurralados pela economia na casa de partida, não veem grande utilidade em conhecer realidades ‘por outros navegados’. Porquê colocar mais uma pedra no seu sapato? Camões, incomoda (tal como a alguns ouvir Billie Eilish). Mas nem sonham eles o quão libertadora poderá ser esta persistência da memória, corolário das virtudes do conforto.
É, pois só dessa forma que podemos compreender como os Lusíadas permanecem atuais ou porque uma pandemia adiou a tour da Billie em 2022. Podemos não precisar de contar sonetos no trabalho, mas foram esses incómodos que nos trouxeram até aqui. Até a mecânica quântica precisou da clássica. Reconheçamos que não são mais os fados da saudade, grandeza e glória que cativam os jovens, mas sim os novos clássicos. A ânsia por entender como idolatrar um ‘bad guy’, mas se declararem ‘happier than ever’. Não precisamos que a história seja uma amostra poética, mas uma prática ideia que pensa o futuro, sem julgar minguada esta nova cultura pop.
De longe devemos achar esta fraca fé em Camões como um vento que não sopra. Cabe aos historiadores, cientistas e todos que empoderam conhecimento, mostrar aos jovens como mesmo sem vento, as nossas caravelas chegaram ao impossível. E hoje, teremos de desafiar as irrequietas águas dos jovens, inovando a capacidade de trazer Camões ao mesmo palco que Billie Eilish. Os tempos permanecem diferentes, mas é a cultura que nos continua a salvar.
Artigo da autoria de José Caetano