Crónica
Estrela
Flagrei três garotos a me observar
Eles não tiravam os olhos de mim
Sacavam-me
Estariam eles curiosos em saber quem sou?
Não, isso não!
ou talvez… quem sabe…
como todo transeunte, os seus olhares eram fuçadores
Olhavam-me vorazmente como quem deseja perguntar algo que não se sabe bem o que se é
E esse desejo de desbravar os mantivera em silêncio absoluto desde então
Contemplando a imensidão do desconhecido estático
Em seguida, depois de muito relutar — duelo travado dentro de si — o mim contra o eu mesmo fora quebrado
Não obstante, venho até mim, então, o primeiro garoto molhado
Magrela, medroso
Olhava-me meio jeitoso, meio de lado: meio à meio
Nunca por completo
Nunca de frente
Não tinha nunca antes me visto — temido —, e não sabia o que poderia eu fazer
O garoto olhou-me rápido, eu não o interessava
Algo lá, aos arredores, o instigava
Algo que não era eu
Então, visto a coisa que antes contemplava distante, mas que agora se punha ao seu lado — ao nosso lado
Não pestanejou. O garoto logo me perguntou:
— O que é isto?
Saquei!
Percebi o que o instigava
De fato, estava certo desde o inicio. Não era eu. Nunca fora.
Nisso, vendo o seu interesse, olhei-o de frente e sorri.
Sorri apenas; em seguida, disse-lhe calmo, sem surpresa:
— Isso é uma estrela!
Ele a olhou. Tocou. E logo retrucou:
— Ela tá morta? questionou
E eu lhe respondi logo em seguida, nem pensei muito
Tratava-se do óbvio. Da mais prática condição
Ela se apresentara para nós já despida de alma, nua de si
já aos prantos
— Sim! Ela tá quebrada
Indiferente, o garoto olhou-a uma ultima vez
Em seguida, correu e lançou-se ao mar: moleque que era..
… como aquele moleque que um dia eu fui… fora eu
um guri
[respingou água pela areia toda. Molhei-me todo]
Visto ao longe o feito de seu cúmplice, venho a mim, perspicaz, o segundo garoto
— O que é isso? disse ele curioso
Ele era menino marrento, meio teimoso
Daqueles que dá vontade de dá uns cascudos pra ver se toma jeito
Sem pensar muito, já incomodado, logo lhe respondi em tom alto:
— É uma estrela!
Ele olhou-a, tocou e a jogou no terceiro garoto
Saiu correndo em passos desordenados e deu um grande mergulho de encontro ao mar
Resultado: Molhei todo de novo
Passado alguns instantes, aproxima-se o ultimo curioso
Veio a mim, carregando o objeto desconhecido na mão
Portando-o meio medroso
Assim surgiu o terceiro garoto
Logo me perguntou meio assustado, menino tímido
Lembrei-me até de um de meus amigos de infância
Ele receava tudo
Tudo lhe era assombroso
Tinha medo até de falar
Esse terceiro menino, meio cabisbaixo, falou calmo, baixo…
Falou pra dentro. Quase não se podia ouvi-lo. E nem precisava
Prontamente, já sabia do que se tratava
E antes mesmo de ser questionado, fui logo respondendo:
– É uma estrela! disse-lhe, já esperando ser molhado pelo moleque levado
Ele então tocou mais uma vez a estrela. Parecia estar intrigado. Então, em uma tentativa de compreender o ocorrido. Na tentativa de se fazer empático, o garoto virou-se para mim sorridente e indagou:
— E ela caiu lá de cima?
Nesse momento eu parei. Foi de súbito. Pensei em tudo o que vivi quando criança. Em tudo o que me foi dito. Feito. O que em mim, ficou contido: infância vasta que tive. Eu sorri. Sorri pra fora. Sem medo. E foi aí que dei a minha pior resposta. Poderia ter dito que sim. “Sim, claro. Ela caiu hoje mais cedo. É que o céu hoje acordou já meio cheio de sonhos”, diria. Poderia ter lhe contado a mais cabeluda estória. Poderia. Deveria até… mas não o fiz. Olhei-o nos olhos. E de novo sorri, mas respondi à seco:
— É uma estrela do Mar
(grosso!)
Decepcionante? Talvez…
Ele fitou-a por uma ultima vez, como quem se despede
Seguiu até a água e a largou para que pudesse ir embora, livre para partir praia adentro
Afundada para bem fundo do mar molhado, salgado até
Depois, sem nada temer, o garoto saltou e me molhou todo
Eram três garotos molhados curiosos…
Parei
Fitei
Me vi ali
Um quarto medroso a espreitar a estrela caída…
[dos tempos de menino desbravador de mares]
Depois disso, a maré encheu e fomos todos embora
Nada mais poderia ser dito
Tudo fora embora com a maré alta
Tudo mesmo:
a estória não contada; a infância dos garotos fora roubada
Até a estrela quebrada se foi.
Artigo da autoria de Ícaro Machado