Opinião

Vid(a)eojogo

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Afastados do teatro da guerra, das trincheiras, das dores, do frio, do cansaço, do sofrimento incomensurável e da morte, no nosso canto confortável, com tudo ao nosso dispor, podemos atualmente “usufruir” do registo em vídeo da guerra na Ucrânia. Isto não é nenhuma novidade, pois já durante a invasão dos Estados Unidos dos países do médio oriente, uma série de vídeos dos soldados americanos foi surgindo. Por um lado, dando a conhecer as atrocidades da guerra e, por outro, propagando de certa forma um sentimento nacionalista e revoltante, que alimentava a máquina da guerra americana. Atualmente, com o avanço significativo, não só do material de filmagem, mas também das redes sociais, estamos à distância de um clique de entrar no corpo de um soldado ucraniano, através de uma GoPro, que combate pela sua terra e pelos seus entes queridos contra a ameaça estrangeira.

Os vídeos são variados, seja de drones a atingir colunas militares, intensos tiroteios nas trincheiras, bombas, granadas, helicópteros, mísseis e crimes de guerra. Tudo o que possamos pensar, haverá vídeo para o mostrar. Ver estes vídeos, para alguns, será uma atrocidade, para outros será emocionante e para os restantes não será assim tão diferente de jogar um videojogo, como o Call of Duty, ou ver um filme, como o recente 1917 ou Sniper Americano. A questão que prevalece sempre é a seguinte: como é que nós conseguimos olhar pelo ecrã onde fica registada a morte de um ser humano, alguém que tinha uma vida tão ou mais complexa que a nossa, sorria como nós, comia como nós, amava como nós, mas, acima de tudo, vivia como nós. Mas naqueles instantes, naquele ecrã, parece que perde toda a sua característica humana. Parece só mais um jogador, só mais um peão no jogo. Estas imagens remetem os nossos cérebros para as dezenas de filmes de guerra que já vimos, para os jogos que já jogamos de certa forma desassociando da própria realidade inerente ao vídeo, a morte de alguém. Desta forma, aquela(s) pessoa(s) perde(m) o seu direito de ser alguém porque quem vê o vídeo muito provavelmente não saberá quem é o indivíduo, não sabe o seu nome, de onde vem, o que fazia… e daí perde o que é seu por direito, a sua identidade.

O registo vídeo da guerra não traz nada para a nossa sociedade (ignorando que futuramente será um excelente registo histórico), apenas retira. Retira a humanidade. Mas a verdade é que essa falta de humanidade também reside, obviamente, na própria guerra, onde o homem se reafirma, como um selvagem, um lutador e um sobrevivente. Perde o carácter cívico, e enaltece o seu carácter selvagem. Estes vídeos carregam em si tanto um afastamento como uma aproximação da realidade da guerra, uma fratura que, de um lado mostra essa realidade crua e muitas vezes não censurada, e do outro lado o carácter irreal da guerra, pois a visualização é feita em segurança e conforto. Daí surgirem muitos “soldados da internet” que acabam por expor, muitas vezes, as suas visões extremistas e de ódio. Estes “soldados” nunca deram o corpo pela causa, bem como não possuem em si o fardo da verdadeira guerra e dos sofrimentos associados.

Isto é apenas o raspar da superfície de um assunto ético e filosófico que pode se tornar complexo quando feitas as perguntas certas. O que eu gostaria de deixar é uma nota de empatia: não nos deixemos levar pela imagem, não basta colocarmo-nos nos olhos do soldado, temos de ser capazes de sentir o seu corpo, a sua mente, e, acima disso, temos de ser capazes de sentir a dor de tirar e perder a vida, assim como não nos deixemos levar pela síndrome do “vilão” subjacente aos filmes. O “vilão” também sente dor, também terá família, também é humano. Mas isso, será tema para outro momento.

Resta-me só dizer, que tal como toda a informação presente na internet, devemos sempre possuir um olhar crítico sobre a mesma. Somos assolados diariamente com informação sobre estes conflitos, devemos ser capazes de a saber gerir, e caso não saibamos, devemos utilizar as ferramentas ao nosso dispor para nos ajudarem nesse sentido. Por outro lado, às vezes a maior crítica que temos de fazer é a nós próprios, e não à informação que nos rodeia.

Artigo da autoria de Daniel Madeira

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