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Opinião

Novo passe de comboio a 20 euros é um incentivo para (re)conhecer um Portugal marginal

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Ilustração de uma figura antropomórfica colorida, com uma expressão triste, segurando um coração fragmentado. Ao fundo, há uma placa indicando a direção de "PORTO" e uma placa de sinalização com várias cidades do Algarve, como Portimão, Albufeira e Faro. A figura parece estar chorando, com lágrimas caindo de seus olhos.
A medida, prometida pelo Ministro na Festa do Pontal, avança no próximo mês de setembro — Ilustração: Circe, o feiticeiro

Conhecer Portugal de comboio? Luís Montenegro promete “passe verde” ferroviário a 20 euros mensais com acesso ilimitado aos serviços: urbanos, regionais, inter-regionais e intercidades. Se aprovada, medida revoga o passe ferroviário de 49 euros em vigor desde o ano passado.

Em dois anos de Porto, eu conheci muitos tugas que nunca estiveram no Algarve: “é uma coisa de gente que tem dinheiro. Um ordenado mínimo não chega lá”, eles dizem. Com o tempo, fui entendendo que os portugueses não compartilham muito desse costume de viajar pelo próprio país utilizando transportes públicos. Se não forem a dirigir as próprias carrinhas, ou até de boleia pelas autoestradas, nem se dão ao trabalho de saírem de casa. É um balúrdio!

Mas essa me parece ser uma decisão culturalmente imposta e elitista: tem-se de ter carta porque o transporte em lugares ‘distantes’ dos grandes centros é uma seca. E tá tudo bem. 

Seja pelos altos custos, pela falta de tempo, ou até mesmo pela carência de incentivos políticos capazes de instigar o povo a conhecer a sua própria história por trás dos vilarejos, muros e castelos, viajar é sempre ‘longe’ para os portugueses. Os nortenhos, arriscam-se apenas a irem a Vigo para ver as luzes, Serra da Estrela para apanhar neve, um ou dois festivais e já está. Depois disso, não há muito a se fazer além de passar o natal em família nas aldeias onde nasceram. 

Por que as pessoas [empresários] têm tanta cautela com as decisões que beneficiam o povo?

Políticas públicas, nomeadamente a criação de passes promocionais, acabam por estimular a cultura de viajar pelo território nacional. E isso só é capaz de trazer benefícios para todas a gente, não tem outro viés. Tenho visto muitas reportagens a tentar manipular a opinião das pessoas, trazendo impactos negativos para os “cofres públicos” e, principalmente, para a empresa responsável pelas carruagens. Mas isso é uma opinião que foca nas pessoas ou no capital aquisitivo destes serviços? 

[ Entenda alguns argumentos lendo a reportagem Novo passe dos comboios exclui ligações com metro do JN ] 

Um rolê pelo país deve ser garantido à todas as pessoas 

A democratização e o acesso ao uso de transportes públicos, além de oferecer um lugar à janela para que se possa conhecer um Portugal além de Lisboa, Porto e Algarve, é também uma política que permite que as pessoas interajam com outras realidades, vivenciando o quotidiano de diferentes regiões e promovendo um intercâmbio social rico em identidade, cultura e património. E mais, isso também pode ajudar na ativação de atividades econômicas e culturais mais locais. 

Ao optar pelo transporte público, especialmente em áreas menos turísticas, viajantes e moradores entram em contato direto com outras rotinas, ouvindo os dialetos falados nas ruas, observando os costumes e desfrutando da culinária e do artesanato típicos da região. Além, claro, de ligar cultura e arte numa rede de acesso democrático a lugares e espaços. É tipo, viajo porque preciso, volto por que te amo rsrsr 

Parece até ‘bobagem’, mas esse tipo de experiência promove uma compreensão mais profunda das tradições e da identidade cultural de um país, enriquecendo a bagagem cultural de quem viaja.

Por isso, políticas públicas que oferecem passes promocionais, como bilhetes de trem a preços reduzidos, são cruciais para estimular essa prática, principalmente entre os jovens. Essas iniciativas que democratizam o acesso ao transporte, tornando as viagens pelo território nacional mais acessível e incentivando um turismo interno dos locais, promove diretamente uma contracorrente que luta diretamente contra o apagamento cultural que Portugal vêm a sofrer devido a gentrificação dos seus espaços e a comercialização de lugares em detrimento da cultura local.  

Para os jovens, que frequentemente possuem menos recursos, esses passes abrem portas para descobertas culturais e ampliam a sua visão de mundo. Além disso, ao promover a circulação de pessoas pelo país, essas políticas fortalecem o sentimento de pertencimento e coesão social, contribuindo para a formação de uma sociedade mais consciente e conectada com as suas raízes.

Países como Espanha e Alemanha, por exemplo, sempre promovem politicas de bilhetes com descontos à jovens que desejam circular pelo país à procura de experienciar culturas e vivenciar costumes de perto.

Para quem o transporte público é feito? 

A Comissão de Trabalhadores (CT) da empresa Comboios de Portugal (CP) emitiu uma nota comentando que o impacto da decisão anunciada pelo primeiro-ministro, Luís Montenegro, deverá acarretar num “desastre financeiro” para a CP, além de escancarar a falta de capacidade para responder o grande aumento da procura que a medida implicará. 

“Para termos uma ideia do impacto financeiro deste Passe Nacional, 20 euros é menos que o bilhete de 2.ª classe num comboio Intercidades de Lisboa a Coimbra (21,3 euros em 2.ª classe; 26,85 euros em 1.ª classe)”, apontou a CT da CP – Comboios de Portugal, em comunicado enviado à imprensa.

A CT também afirmou que o novo passe ferroviário representa “mais uma grosseira violação” do contrato de serviço público. Segundo a comissão, esse contrato estipula que a transportadora deve ser financeiramente compensada pelas obrigações assumidas, e que o Estado só pode alterar os parâmetros do serviço público após notificação prévia à empresa. 

Esse aviso permitiria à transportadora realizar um estudo de viabilidade operacional e de impacto na compensação devida, estudo que deve ser submetido à Autoridade de Mobilidade e Transportes (AMT) — aqui, leia-se arrumar formas de estancar essa sangria e adornar esse suposto ‘lucro’ perdido. 

Mas calma, o transporte público não é para dar lucro. Transporte público é para as pessoas se moverem com conforto, agilidade e a baixo custo. É sobre ligar o país. Os supostos valores para “manter” esse serviço já estão embutidos nos inúmeros impostos pagos pelo povo, sem falar no absurdo de taxas de portagens que as estradas sequestram das pessoas numa simples viagem [em todo o território] do Porto à Braga, por exemplo.

E mais, a transportadora tem concessão para prestar o serviço, por isso, oferecer o que se espera é — contratualmente — o mínimo, não o básico. Se a demanda aumenta, o investimento da empresa para com a prestação do serviço deve aumentar. E é suposto o estado “arcar” com esse subsidio, seja no orçamento anual ou através de investimentos da União Europeia (UE) — que são muitos, né?

CP perde cada vez mais utilizadores para os autocarros 

Com cerca de 173,2 milhões (em 2023) de passageiros transportados por ano, a CP é uma das mais representativas empresas portuguesas e a maior empresa de transportes terrestres a operar em Portugal. Acho que esses números já nos ‘clareia a mente’ e aponta que a empresa já está num monopólio de lucro. 

Os jovens já estão a utilizar autocarros que oferecem os mesmos percursos por preços mais acessíveis. Empresas terceirizadas e até mesmo de outros países lucram com a prestação desse serviço que deveria ser mais acessível. E nem vamos entrar no quão péssimo são os serviços de transportes municipais de regiões como Vila Nova de Gaia, Vila Real, Algarve e tantos outros distritos marginalizados que te obrigam a seguir tabelas de horários irregulares ou a comprar um carro. 

O passe de 20 euros está incluído num “plano de mobilidade” que será aprovado, para facilitar a utilização de meios de transporte sustentáveis, que não causem problemas ambientais, como prevê o primeiro-ministro.  Mas também é uma política de acesso e investimento no nosso direito de “ir e vir”. 

O Governo ainda não avançou com mais detalhes, como, por exemplo, se vai compensar a CP pela suposta perda de receita com esta medida, quando entra em vigor e como vai ser feita a gestão dos bilhetes. Mas estou bem ansioso para começar a adentrar nas regiões marginais de Portugal e perceber um bocadinho mais de como as coisas funcionam ou não   por lá. 

Na pior das hipóteses, que esse valor promocional seja mantido pelo menos durante o Verão. Seriam cerca de quatro meses para as pessoas circularem e aproveitar o sol em mais regiões. Numa República que sempre governou para os grandes empresários, qualquer politica que fuja disso é abominada. 

 

Artigo da autoria de Ícaro Machado | Fonte: Renascença e JN

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