Artigo de Opinião

Pseudofruto: A Comercialização do Corpo e a Mediação dos Mass Media

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O conceito de corpomídia, desenvolvido por Christine Greiner e Helena Katz, trata o corpo como um meio de comunicação e de expressão, permeado por sentidos que vão além da materialidade física | Imagem: Adam and Eve, de Tiziano Vecelli.

A institucionalização da sexualidade, juntamente com essa ideação neoliberal da beleza estética “manipulável”, estão a orientar essa redescoberta e o consumo vulgar dos corpos. Os signos, no mercado de informações, subsidiam o erótico que dá forma aos desejos: somos todos produtos esvaziados pelo capitalismo inculpador

O processo computacional das comunicações de massas dispensa um looping imperativo de uma mensagem que gira em torno do consumo da mensagem. Nos (des)encontramos numa sociedade do pseudo-acontecimento, da pseudo-história e da pseudo-cultura. É a generalização da substituição do código ao referencial que define o consumo nos meios de comunicação de massa nessa e-sociedade hiperconectada que sonha com essa metáfora duma substância capaz de rejuvenescer o tempo. 

Debí tirar más fotos? O acontecimento bruto — o real — surge então como uma espécie de permuta, não como material de troca. Ele (acontecimento) só se torna consumível depois de filtrado, retalhado e reelaborado por toda uma cadeia industrial de produção — um verdadeiro arsenal de filtros e esquemas algorítmicos para engajar.

Foi na forma (meio e mensagem) que tudo mudou: em vez do real, substitui-se em toda a parte um neo-real, inteiramente produzido a partir da combinação dos elementos de um código tracejado num esquema de receita sobre como devemos ser e estar

O corpo, assim, é reapropriado, segundo as ideias do filósofo francês, Jean Baudrillard, se convertendo nessa função de objetivos capitalistas: têm de investir para frutificar. O corpo não se reapropria seguindo as finalidades de autonomia do sujeito, mas de acordo com o princípio normativo do prazer e dessa rendibilidade hedonista, segundo a coação de instrumentalidade diretamente indexada pelo código e pelas normas da sociedade de produção e de consumo dirigido. 

Por outras palavras: administra-se e regula-se o corpo como património; manipula-se como um dos múltiplos significantes de estatuto social. O corpo torna-se, então, objecto de um trabalho de investimento (solicitude, obsessão) que, sob o manto do mito de libertação com que se deseja cobri-lo, representa um trabalho ainda mais profundamente alienado que a exploração do corpo na força do trabalho (Baudrillard, Sociedade do Consumo, 1995). 

Corpo Energético: Um Templo Sagrado no Tempo-Espaço 

À imagem e semelhança. No longo processo de sacralização do corpo como um valor exponencial, o corpo funcional deixa de ser visto apenas como carne — como sempre fora representado pela religião — ou meramente como estrutura de força de trabalho, como na lógica industrial. Ele agora é retomado em sua materialidade (ou idealidade visível) e passa a ser visto como objeto de culto narcisista ou como um elemento de tática e de ritual social. 

Nesse contexto, a beleza e o erotismo assumem papeis de grande importância, funcionando como motivos centrais desse processo.

Baudillard fala que é preciso distinguir claramente o erótico, enquanto dimensão generalizada da permuta das nossas sociedades, da sexualidade propriamente dita. Custa distinguir o corpo erótico, suporte dos signos cambiado do desejo, do corpo enquanto lugar do fantasma e habitáculo do desejo. 

No corpo/pulsão e no corpo/fantasma, predomina a estrutura individual do desejo. No corpo erotizado, predomina essa função social da permuta. Neste sentido, o imperativo erótico que tal, como a cortesia ou tantos outros rituais sociais, passa por um código de signos, reduz-se — como imperativo estético da beleza — a variante ou a metáfora do imperativo funcional.

O filósofo acredita que o erótico reside nos signos e nunca no desejo. Logo, o corpo ajuda a vender. E isso é uma verdade que faz bastante sentido numa sociedade simbólica-visual que tem preguiça de ler. Contudo, numa perspectiva do indivíduo existencial onde a existência precede a essência, o erótico pode, facilmente, ser manipulado por nossos desejos, principalmente os entendermos como subprodutos estruturados, essencialmente, em nossas memórias sexuais infantis (Freud). 

Corpo Sintético: Plastificado Rosto, Amor e Religião 

Sim, a beleza estética ajuda a vender. Logo, o erotismo promove igualmente o mercado. E com o corpo acontece a mesma coisa que com a força de trabalho: importa que seja libertado e emancipado, mas de modo a ser irracionalmente explorado para fins produtivistas. Nunca consciente de sua submissão.  

Assim, é necessário que se estabeleça  essa falsa livre determinação e o interesse pessoal — princípios formais da liberdade individual do trabalhador — para que a força de trabalho possa transformar-se nessa busca salarial e em valor de troca. Essa armadilha do sonho capital de consumir, ter e manter status. 

Nesse sentido, o indivíduo consegue redescobrir o próprio corpo e reinvesti-lo narcisisticamente — princípio formal de prazer — a fim de a força do desejo e poder possa se transformar em procura de objectos/signos manipuláveis racionalmente na lógica da autoenganação. 

Para o corpo sintético, importa que o indivíduo se tome a si mesmo como objecto, como o mais belo dos objectos e como o material de troca mais precioso, para que, ao nível do corpo desconstruído, da sexualidade desconstruída, venha a instituir-se nesse processo económico de rendibilidade.

Para entender o corpo performado como produto no mercado digital, especialmente nas plataformas de conteúdo adulto como OnlyFans e nas redes sociais que o promovem, podemos partir dos conceitos de corpomídia e tecnogênero que ampliam a nossa visão sobre como a sexualidade e o corpo se tornam entidades moldáveis e manipuláveis, reconfiguradas de acordo com as exigências de consumo e de exposição da cultura digital.

Corpomídia: O Corpo como Interface e Produto

O conceito de corpomídia, desenvolvido por Christine Greiner e Helena Katz, trata o corpo como um meio de comunicação e de expressão, permeado por sentidos que vão além da materialidade física. No contexto digital, especialmente para criadores de conteúdo adulto, o corpo é ao mesmo tempo o meio e a mensagem. Ele carrega uma semiótica que reflete e responde a padrões estéticos, a desejos do público e a demandas de visibilidade, transformando-se em um tipo de “interface” com valor simbólico e econômico.

No mercado digital de conteúdo sexual, o corpo não apenas “é” — ele atua como uma mídia viva, dinamizada pelas exigências do público e pelos algoritmos que promovem maior visibilidade. Cada postura, estética, e mesmo ângulo fotográfico é escolhido para amplificar o impacto visual e o engajamento, transformando o corpo em uma mercadoria que comunica sensações e desejos específicos. 

O conceito de corpomídia então, sugere que o corpo, em vez de ser uma entidade passiva, é moldado como um produto que responde a uma demanda de consumo contínuo, e está sempre “em performance”, ajustado aos parâmetros de atenção e de prazer que o mercado digital impõe.

Tecnogênero: A Sexualidade como Produto Tecnológico

O conceito de tecnogênero, explorado por Paul Preciado, propõe que o gênero e a sexualidade são construções moldadas não apenas por fatores culturais e sociais, mas também por dispositivos e tecnologias contemporâneas. 

No caso dos criadores de conteúdo adulto — o corpo comercial —, o tecnogênero aparece quando esses corpos adotam, por exemplo, performances de masculinidade ou feminilidade acentuadas, ajustadas e amplificadas pelas lentes de câmeras e pelas expectativas de suas audiências. 

Esses corpos passam a ser mais do que entidades físicas e subjetivas: tornam-se produtos performados em resposta a exigências específicas, reconfigurados para intensificar o apelo sexual e gerar maior engajamento.

A tecnologia da plataforma e o marketing digital potencializam o tecnogênero ao definir padrões de visualidade, estabelecer categorias de atração e sugerir como o corpo deve se mostrar para ser desejável e, portanto, lucrativo. 

Esse enquadramento artificial e tecnomidiático possibilita que o corpo se adeque de forma calculada e, assim, seja consumido conforme padrões específicos de gênero e desejo, configurando a sexualidade como um produto gerido por uma série de aparatos tecnológicos e estéticos que sustentam o mercado digital.

Transparência e Exposição: A Visibilidade como Necessidade de Mercado

Byung-Chul Han, ao discutir a Sociedade da Transparência (2012), aponta como o valor atual é medido pela exposição e pela visibilidade. A lógica de transparência impõe um ideal onde quanto mais exposto o sujeito, mais ele valida sua existência social e econômica. Na cultura digital, a visibilidade do corpo e da intimidade dos criadores de conteúdo é crucial, pois se converte em moeda. 

A transparência, no caso dos perfis no X (Twitter) ou OnlyFans, é uma estratégia deliberada e necessária para atrair audiência e reforçar a presença do criador no mercado. A exposição constante, o convite para o olhar do público, transforma-se em um imperativo, uma vez que o algoritmo e os padrões de consumo valorizam aquilo que está à mostra, reforçando a norma de que só existe o que é visível.

Essa transparência, no entanto, não é uma mera exposição; é uma performance que busca maximizar o impacto visual e emocional sobre o público, captando atenção e convertendo visualizações em receita financeira. Assim, a necessidade de exibir-se transcende o desejo individual dos criadores de conteúdo e torna-se quase uma compulsão do sistema, onde o valor econômico é proporcional à capacidade de se expor e engajar a audiência de maneira intensa e constante. 

Reinvenção da Intimidade. Esses conceitos evidenciam que o corpo, sob o contexto das plataformas digitais de conteúdo adulto, é um produto tecnológico, uma mídia e um vetor de exposição. A sexualidade é, então, transformada em um campo de capitalização incessante. 

O corpo performado em plataformas digitais atende tanto à lógica de instrumentalização mercadológica quanto à demanda de um público que anseia pela visibilidade e pela proximidade (ainda que ilusória) com esses sujeitos. E os Mass Media mediam essa relação ao pautar o consumo do corpo enquanto objeto de fascínio. 

Esse e outros textos já publicados aqui fazem parte de minhas anotações, cruzamentos de informações e devaneios que tenho escrito como base discursiva de minha dissertação de mestrado acerca de homens gays criadores de conteúdos para plataforma OnlyFans.

 

Artigo da Autoria de Ícaro Machado 

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