Devaneios
Até lá, estamos perdidos em alto mar
Eis aqui reproduzido, palavra por palavra, o discurso com que o Sr. Jack Keith Reuel McDonald se defendeu das vis acusações que lhe foram feitas. O Sr. McDonald, como é seu costume, soube provar o seu ponto, o qual eu, Gonçalo Costa, seu fiel amigo e discípulo, integralmente subscrevo.
Os homens estão perdidos no mar, meritíssimo! Estão perdidos em alto mar os homens que vemos nesta sala. Estais vós perdidos, meritíssimo, e estou eu também, estamos nós perdidos, se nos julgamos a salvo. Há quem se julgue a salvo, mas qual de nós sabe o caminho? Somos marinheiros, somos pobres marinheiros… e perdemos as nossas bússolas. Não temos faróis à vista. O sol está coberto, as estrelas também. Somos homens perdidos em alto mar.
Fôssemos nós homens perdidos numa sala com leões, saberíamos estar condenados. Mas a nossa situação é bem pior. Para nós, ainda há esperança – e a esperança dá vida à nossa alma – e a nossa alma continua viva, e sofre. Pudéramos nós perecer prontamente. Pudéramos nós por de parte tais perigos. Mas não.
Somos homens perdidos, mas não estamos ainda condenados. Estamos perdidos, estamos perdidos… Está perdida a nossa geração. Quem nos resgatará? Estamos perdidos porque nos julgamos salvos. Estamos perdidos porque não chamaremos o médico. Um homem sem braço irá ao hospital; mas onde irá um homem sem alma? A quem recorrerá?
O mundo roubou-nos a alma, meritíssimo! Mas foi mais longe. Foi tão profundo o furto, tão maléfico, tão pernicioso, tão perfidamente nefasto, que o mundo não só no-la roubou, como ainda nos convenceu de que não temos alma, de que as almas não existem. É loucura, meritíssimo, é loucura! Quem é este homem, que vive mas nega a vida? Quem é este, que jura a pés-juntos não haver verdade? Eis então porque estamos perdidos – deixámos os cegos guiarem o rebanho.
Mas mais vos direi, meritíssimo. Não só estamos perdidos, mas estamos perdidos em alto mar. Estamos em constantes altos e baixos. A escuridão é tamanha que não se distingue o mar que nos atormenta e o céu que nos chama. Em todas as direções vemos promessas incertas de terra firme. E, o que é mais, morremos de sede envoltos por águas que não podemos tomar.
E tudo isto… tudo isto são as mentiras do modernismo. Tudo isto foram as promessas da razão pura. Tudo isto, meus caros, tudo isto, meritíssimo, tudo isto porque julgámos ser mais a liberdade que a verdade, a tranquilidade que a virtude. Quem virá em nosso auxílio, num tempo perdido como este? Onde estão os santos e os profetas, os líderes e heróis que o nosso povo precisa?
Eu, que não passo de uma nódoa entre os homens, fui guiado por uma pequena visão. Foi esplêndida, cheia de lucidez, plena de sentido. Os meus olhos abriram-se – os meus olhos abriram-se, e o que vi eu?
Vi um louco, meritíssimo, um louco eu vi. Vi-o subir aos grandes parlamentos e gritar àqueles lunáticos – “Qual de vós nos libertará? Qual será o grande marinheiro?”. Ouvi uns murmúrios, ouvi umas promessas, uns olhares e discursos falazes – mas ninguém se ofereceu. Então vi esse louco erguer-se às grandes corporativas e associações de homens. O mesmo lhes gritou, mas não houve resposta – uns assobios, uns olhares desviados, alguns murmúrios e um ajeitar de gravatas… mas ninguém se ofereceu. Eis que o louco continuou a sua marcha, sem meias nem sandálias, e enfim passou pelos átrios das grandes universidades. “E vós, professores e magistrados, qual de vós guiará a humanidade? Doutores e bacharéis, qual de vós será o tal?” O louco esperou pacientemente uma resposta, e com paciência suportou as teorias e teoremas, as inferências e os entimemas daqueles bobos, mas, ao fim do dia, ninguém se ofereceu.
Era então noite, mas louco não desistiu. Desceu enfim à cidade e bateu porta a porta. Mas as portas, meritíssimo, as portas estavam fechadas. Uma a uma, as luzes apagavam-se com a passagem do louco. Algumas crianças espreitavam pelas janelas e cortinados, mas depressa os pais as puxavam para dentro. Então, debaixo da entrada de uma pequena livraria, por detrás de algumas caixas de cartão e uns sacos negros, estava um homem – cansado, com fome, sujo e com frio. A sua barba grisalha não era aparada há algum tempo, e o mesmo com o cabelo. Agora, aquilo que vos digo, meritíssimo, não crereis, mas eis que o digo, pois se deve dizer mais o verdadeiro do que o credível. Antes que o louco pudesse alçar a voz, eis que aquele homem, o mais mísero da terra, se ergueu e, de mão no peito e cabeça inclinada, disse em plenos pulmões: “Se a minha vida vos serve, a minha vida tereis”.
Eis o que eu vi, meritíssimo, eis a visão que me foi concedida. Não sei quem era este homem. Não sei quem é este a que devemos seguir, este marinheiro que nos libertará. Sei apenas isto – sei apenas que, quando toda a geração está perdida, só um louco poderá mudar o nosso caminho. Sei, por isso, meritíssimo, que um louco devo esperar. Essa loucura não nos poderá levar até ao fim, mas a quem está perdido, como nós, em alto mar, uma pequena luz, um início é suficiente.
Dirão que nada disto é verdade. Dirão que sonhei. Mas então eu direi, direi diante deste grande e mui nobre tribunal, que sonhei um mundo melhor. Sonhei mais, sonhais uma vida mais elevada, um povo e uma terra dos quais este povo e esta terra são uma mera sombra. Sonhei com paz e libertação. Sonhei, e sonho, e é essa a minha acusação, da qual sou hoje réu, com um sol que brilhe sobre a terra, com uma chuva que fresque os seus campos, com uma lua que embeleze os seus céus. Sonhei, claro, e sonho, com um mundo de corações puros. – Se me condenais, pois, de vos amar e de sonhar com a vida, neste triste vale de lágrimas, pois bem… sou culpado. E se me condenais à prisão, nada mudais. E se me condenais à morte, nada mudais. Neste mundo moderno estamos perdidos, e nele eu não posso viver.
Estamos perdidos, meritíssimo, estamos perdidos em alto mar. Mas eis que neste mísero mundo lunático aparecerá um verdadeiro sábio, um homem a quem todos chamarão louco. E ele levar-me-á, onde quer que me detenhais – a mim e a quem comigo o quiser seguir – a est’outro, a este homem de barba crescida, de roupas sujas e corpo ferido, rosto cansado e mãos doridas, pés feridos de caminhar, pernas desgastadas, ombros pesados… mas olhos vívidos e acolhedores. E ele nos guiará, e a sua voz nós escutaremos.
Até lá, estamos perdidos em alto mar.
Artigo da autoria de Gonçalo Costa