Crónica

Chuva: o epitáfio da boa vida

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Não sei quanto a vocês, porém o meu estado de espírito é condoído pela meteorologia. A chuva aborrece-me, entristece-me e tira-me a vontade de realizar a mais mundana tarefa que tenho para aquele dia. Quando acordo ao som daquela enraivecida água a bater no parapeito da minha janela, imagino as cansativas- e molhadas- horas que se avistam. Enfim, é o sentimento de pesar que me faz dar valor aos tempos de confinamento.

Um dia chuvoso implica logo uma série de particularidades. A mais óbvia delas todas é a necessidade de possuir um guarda-chuva, um fenómeno de grande complexidade. Para já, este é um objeto que possui inúmeras alcunhas, eu e os meus amigos apelidamos-lhe, carinhosamente, de “chuço”. Bem, isto acontece porque o nome desta jigajoga é parvo. Um “chuço” não guarda a chuva, quando muito, bloqueia a chuva, é uma espécie de escudo que protege o bravo ser humano de, portanto, água. A única altura em que é legítimo chamar aquele pau metálico com um tecido no topo de “guarda-chuva”, é quando este – normalmente de baixa qualidade – é sujeito a um vento intenso, invertendo a parte de cima numa espécie de bacia que realmente pode servir para acumular água. Bem, mas isto era só uma irritação pessoal que aproveito para desabafar com as 12 pessoas que leem isto, já que desconfio que o Pedro Boucherie nunca me vai convidar para o seu programa. Outra especificidade dos “chuços”, esta para a malta mais nova, é que ninguém entre os 14 e os 25 anos alguma vez comprou mais do que um na vida – e, atenção, afirmar que a dada altura esta faixa etária despendeu de uns avultosos 7 € é ousadia minha. É uma teoria da conspiração que aproveito para disseminar – tenho fé que o pessoal dos capacetes de alumínio pegue nisto agora que o Covid já “não é uma doença”- que consiste no seguinte: assim que foram inventados os guarda-chuvas espalharam cerca de milhões por todo o mundo, debaixo dos bancos dos autocarros, naqueles buracos que os cães usam para esconder os ossos, em centros comercias, um pouco por toda a parte. E agora, esse número finito de “chuços”, vai rodando todo o mundo entre jovens numa espécie de “roubo mútuo” aceite por esta porção da sociedade. Quando alguém, compreendido entre estas idades, se esquece do seu guarda-chuva num sítio, é totalmente legítimo que acabe por ficar com um que acha noutro lugar qualquer, e que foi abandonado ali fruto do mesmo sentido de irresponsabilidade e distração de um outro camarada. Eu já cheguei a, digamos, “achar” e perder um guarda-chuva no mesmo dia. É um ciclo vicioso e incomensuravelmente poderoso, que jamais alguém o pode travar.

Terminando esta infindável passagem pela temática dos guarda-chuvas, falemos agora do tipo de terreno que teremos pela frente nestes dias. Quando chove, são vários os desafios que temos de enfrentar quando saímos de casa. Primeiramente, aconselho o uso de umas sapatilhas confortáveis porque, apesar do caminho que vamos fazer ser exatamente o mesmo, as inúmeras poças de água fazem com que tenhamos de nos desviar constantemente das mesmas – numa espécie daquela finta que o Ronaldo usa para driblar os adversários – e, parecendo que não, isso cansa. Lembrem-se que estamos todos no mesmo barco, no sentido em que da mesma forma que nos estamos a esquivar daquele acumular de água, também os restantes cidadãos o fazem. Por isso, para evitar acidentes desnecessários, sugiro que quem sobe a rua se desvie da esquerda para a direita e quem a desce o contrário. Independentemente do teu referencial, há que estar especialmente atento a poças que se encontrem junto da estrada, pois há por aí uns neandertais que não aguentam o primitivo ímpeto de passar a todo o gás pela aquela água, molhando aqueles pobres inocentes que só querem chegar o mais seco possível ao trabalho.

Quanto à indumentária usada num dia de chuva, tenho um chamado mix-feeling. Por um lado, as roupas que uso quando esta meteorologia se verifica são as que eu considero terem mais style, porém elas acabam sempre, invariavelmente, molhadas. Sim, porque, se pensarem bem, não há qualquer ser mortal que tenha conseguido a proeza de fazer a rotina normal do seu dia e chegar a casa sem uma única pinga. Até hoje, não foi inventado nenhum “chuço” que consiga proteger na totalidade o Homem desta inevitável condição meteorológica. E até quem tem o privilégio de ir na sua privada viatura para o seu local de trabalho acaba sempre por apanhar aquelas pinguinhas naquele sprint do carro à porta do estabelecimento. Atrevo-me a dizer que até Einstein, no meio de todas as teorias que lhe passaram pela aquela genial cabeça, pensou que se fosse a correr mesmo muito depressa, e com uma pasta ou mochila na cabeça, conseguia chegar ao seu destino impecavelmente seco – até porque quando a distância é visível a olho não há necessidade de estarmos a passar pelo fastidioso processo de abrir e fechar o guarda-chuva. Já nos aconteceu a todos.

Os dias de chuva são difíceis para mim e sofro quando percebo que, durante os próximos tempos, tudo o que descrevi acima vai passar a ser a minha vida. E não quero parecer um menino privilegiado que se queixa de uma simples manifestação de água, porque eu sei que no Irão há mulheres a lutar contra os tiranos que lhes querem dizer como devem usar os seus cabelos, ou os pobres italianos que viram chegar ao poder um regime abertamente fascista ou os ucranianos que, parecendo que não, ainda andam a ser bombardeados por um boneco que está embriagado de vodka desde fevereiro. Mas é que eu, no outro dia, comprei umas sapatilhas mesmo fixes, só que são de camurça, e não as posso usar à chuva. Ainda que para esses lados a vida não só seja um pouco mais difícil como não é bem uma garantia, ao menos lá não chove, que eu fui ver à net.

No fundo, há pessoas que passam pior e, apesar de a chuva complicar imenso a minha rotina, quando chego a casa, seco-me e sentado no sofá, lentamente, vou-me fundindo com uma manta bem quentinha enquanto vejo a minha série favorita, percebo que nem tudo é mau. Já para não falar que aquele barulhinho da chuva a bater na janela tem um sabor especial quando sabemos que não temos de ir mais lá fora.

No entanto, qual não é o meu espanto, na manhã seguinte a um dia chuvoso que serviu de inspiração a este mediano texto o que é que surge? O sol, e toda a sua magnificência. Enfim, um aviso perverso de São Pedro que nos deu uma antestreia do que está para vir. Ou isso, ou então as alterações climáticas fazem com que o tempo seja tão instável como o Bruno de Carvalho. É capaz de ser isso é.

Artigo da autoria de José Miguel Dantas

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