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Crítica

Motel Destino geme alto, mas não faz gozar

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Cartaz do filme "Motel Destino", dirigido pelo cineasta brasileiro Karim Aïnouz que estreiou em no Festival de Cannes 2024.
No litoral cearense, Motel Destino traz a decadência do homem branco sulista | Cartaz: Imagem de Reprodução

Numa sala sem mais cadeiras disponíveis, um grande público ansiava para saber qual sina a noite tomaria. O longa Motel Destino é exibido pela primeira vez no Porto com grande parte dos espectadores brasileiros. Vaia cearense, calor da mulesta e um discurso político potente marcam o evento. 

Cinema Trindade. Na última sexta-feira, 16, a Invicta recebeu a prévia do filme Motel Destino (2024) com a presença do seu realizador, Karim Aïnouz. Depois de uma longa fila à porta de entrada, o calor de fazer suar todo o corpo, visuais deslumbrantes e uma trilha sonora eletrizante nos créditos finais ficaram a cargo de demarcar a minha passagem pelo motel na CE-040 que liga Fortaleza ao litoral cearense. Um verdadeiro reencontro com o meu saudoso Ceará. 

O longa-metragem Motel Destino tem como foco um estabelecimento de beira de estrada e toda a sua atmosfera pitoresca interiorana: festa no estacionamento de posto de gasolina, paredão de som e muita cachaça. O filme acompanha Heraldo (Iago Xavier), um jovem que “resistiu para existir desde que nasceu”, numa fuga desconcertante que o leva até o Motel na tentativa de encontrar um novo destino para as suas perdas mais recentes. 

A chegada do jovem transforma de forma definitiva o cotidiano de Diana (Nataly Rocha) e Elias (Fábio Assunção), donos do Motel que se torna palco de jogos perigosos de desejo, poder e violência. Sob o céu em chamas que faz dourar a pele suada, Karim constrói um Heraldo destemido e sexualmente ativo.

Um autêntico menino do litoral que alimenta sonhos, anseia por mudanças e, acima de tudo, deseja alcançar um tipo vulgar de status quo, repetido no mantra que todo nordestino internaliza que é o tal vencer na vida. 

Pela sexta vez no Festival de Cannes — para orgulho de milhares de brasileiros que tomaram as redes sociais para comemorar a repetição do feito, mas que talvez nem compareçam ao cinema para prestigiar a obra — O filme de Karim foi selecionado para fazer a sua primeira estreia oficial para o mundo no evento. No ano passado, ele concorreu neste mesmo festival com “Firebrand”, seu primeiro projeto de língua inglesa. 

Karim Aïnouz é um homem gay cearense, diretor de cinema, roteirista e artista visual, conhecido pelos filmes Madame Satã (2002), O Céu de Suely (2006), Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), Praia do Futuro (2014) e A Vida Invisível (2019). Ele é um dos nomes mais fortes do cinema brasileiro na atualidade (veja a lista completa de produções). 

Assinando o meu cancelamento ou nem por isso 

Karim Aïnouz — que carrega a palavra carinho numa fonética cearencês de seu nome — destaca que o filme é um “banho de mar depois dos anos de trevas que o Brasil enfrentou com o golpe político do desgoverno bolsonarista: saímos da UTI, então corremos para a praia”. Nisso, pode até parecer que Karim está a produzir mais um filme no nordeste, mas desta vez este é bem fiel ao Meu País o Ceará

A palavra destino é o evocativo que embala todo o drama. Por isso, as possibilidades de desfechos até inundam a nossa mente, mas somos surpreendidos pelo caminho mais provável possível. O thriller erótico apresenta um roteiro recheado de diálogos um tanto óbvios e ‘discursos políticos genéricos’, mas tem sua piada em alguns muitos momentos. Afinal, são todos cearenses, né? 

Algumas cenas seguem com uma certa rapidez e quase sem muita tensão. Por vezes, somos surpreendidos por alguns cortes ‘destoantes’ que ficam a cargo de representar os delírios de Heraldo, mas que aparecem mais para desconcertar a narrativa de alguma forma que julgo desnecessária. Nem traz terror, nem horror, nem medo. O suspense fica a cargo da trilha que, a meu ver, é um ponto muito forte na obra. O momento de elucidação de Heraldo acerca dos fatos passa batido. 

O filme meio que te deixa com vontade de entender mais cada personagem em sua profundidade, sabe. O que os trouxe até tudo isso? O que é tudo isso? 

O universo sexual da coisa remete, como o próprio realizador indicou na ocasião, ao Pornochanchada, estilo de filme que começou a ser produzido na década de 1970. O movimento, por uma confluência de fatores econômicos e culturais, em especial com a liberação dos costumes, produziu uma nova tendência no campo cinematográfico no questionamento dos costumes e na exploração do erotismo

Entenda, estamos falando de um produto cultural tipicamente do Brasil, com produções de baixo custo, realizadas principalmente na Boca do Lixo.

Percebo a estética, no entanto, para tornar o Motel mais interessante, faltou aprofundar mais as várias temáticas que poderiam render uma maior veracidade da coisa toda. Por exemplo, cabia um momento para discorrer mais sobre fetiches, sexo e a trilha sonora de gozo “aos gritos” que correm pelo corredor do estabelecimento durante todo o filme.

Para além do voyeurismo que o filme emana, as cenas poderiam entregar mais sexualidade em discurso. As pessoas podem até chegar [lá] sozinhas a uma reflexão mais profunda sobre as imagens que tomam a tela, mas trazer ‘enlaces’ ajudaria a tornar a narrativa mais profunda nesse argumento. Para mim, Motel Destino observa pelo freixo, mas esquece que detinha o poder de participar.

Um filme sobre sexo, submissão e homens: uma receita antiga 

Como bem pontuado por uma garota na plateia, ao questionar Karim durante a roda de conversa, sobre o filme ser mais uma narrativa que “gira em torno de dois homens”, o longa também apresenta a decadência do homem branco sulista que migra para o nordeste na tentativa de se tornar importante — isso não fica descaradamente evidenciado narrativamente, mas é uma leitura semiótica muito pertinente. 

O realizador traz Fábio Assunção no papel desse homem branco viril que ganha dinheiro acolhendo prazer, tesão e gozo. Elias, nome do personagem interpretado por Fábio, é o típico homem macho que bebe uísque com gelo — porque é caro e performático — até precisar que outro macho se compadeça com a sua estupidez para carregá-lo até a cama depois de um banho rápido de embriaguez. 

A escolha do galã para dar vida a Elis é o maior acerto do filme. O ator já enfrentou uma onda de “merdas”: escândalos com drogas e até prisão. Sem falar que, nesta mesma época, também foram partilhados dois vídeos íntimos nas redes sociais em que o ator parece visivelmente embriagado e rodeado de mulheres seminuas num quarto de motel.

Destino. Em 2016, Fábio Assunção tornou pública a sua luta contra as drogas. “Demorei a aceitar que tinha um vício e esse é o primeiro passo. O caminho é aceitar e pedir ajuda. Eu tinha medo de ser criticado e visto como uma referência negativa”, afirmou o ator em entrevista ao Fantástico.

A mídia, claro, tratou de “embranquecer” os fatos, abordando o ocorrido como uma “grave dependência de álcool e outras drogas”. O perdão dado a Fábio é reflexo de nossa sociedade hipócrita que cultua olhos claros enquanto demoniza Heraldos todos os dias. 

Pega o Guanabara e vem: o calorzinho do Ceará 

O filme é totalmente cearense: tem elenco, produção e roteirista nascidos no estado. As gravações aconteceram em Beberibe, cidade do litoral do estado. Os atores estreantes são, alguns, até meus conhecidos. Renan Capivara brilha no papel do irmão de Heraldo; o figurinista Yuri Yamamoto dando vida àquela gay “gala seca” e, claro, Iago Xavier, artista cearense que começou atuando em peças de escola. Este é o primeiro trabalho de Iago em um longa-metragem.

O Ceará é mesmo essa potência de artistas. Desde 2019, Fortaleza é a Cidade Criativa do Design, integrando a Rede Cidades Criativas da Unesco (órgão das Nações Unidas para a educação, ciência e cultura).

A economia criativa é um dos motores dessas transformações da cidade, que tem 914 empresas desse ramo e abriga nada menos que 23% dos estabelecimentos de design do Nordeste. O setor de economia criativa movimenta US$ 135 milhões, o que representa 0,9% do PIB da cidade (SEBRAE).

Esse reconhecimento implicou em mais investimento em equipamentos que promovam cultura e entretenimento a partir do fomento à arte enquanto formação cidadã.

A Rua das Tabajaras, Porto Iracema das Artes, Vila das Artes, Rede Cuca (onde estive socioeducador num projeto), Centro Cultural Bom Jardim, Cineteatro São Luiz, Instituto Dragão do Mar e tantos outros equipamentos estimulam o nosso povo a pensar e produzir arte e desenvolver habilidades para a difusão da cultura a partir da potencialização de cidadãos prosumers. Nisso, o cinema brasileiro tem ganhado ainda mais espaço na capital cearense, tanto na produção como no consumo.  

Fortaleza quiçá, o Governo do Estado do Ceará agora só precisa desmarcar algumas figurinhas repetidas e criar mais oportunidades para artistas que precisam ser descobertos. Criar equipamentos é apenas o inicio, agora é preciso colocar as pessoas para fazer a roda girar mais e mais.

Terra da Luz: um vislumbre do meu Ceará 

A verdade é que assistir ao filme de Karim me trouxe de novo para o Brasil. Foi como uma visita guiada numa realidade virtual. As praias, a garganta do diabo, dunas de areias e as famosas falésias brancas. Até a invasão das eólicas na ‘Terra dos Bons Ventos’ ganhou espaço no longa. Já ocupam a paisagem. 

Karim comenta da dificuldade que foi gravar com câmeras digitais em um território solar equatorial: “tivemos de usar lentes para resfriar as imagens saturadas”. Parece que o avanço tecnológico não é planejado para lugares marginais — nada de novo ao sol, o cinema sempre foi um tanto elitista. Mas a gente sempre dá um jeito. 

Sobre o reboliço nas redes sociais, a sociedade digital chegou num momento tão acritico de sua estupidez, que a gente é levado a acreditar que tudo é sempre muito incrível porque a gente não consegue estruturar uma opinião própria sobre as coisas — falta disponibilidade, assimilação e, claro, dialética. 

Por isso, a gente esquece que tem que avaliar; a gente esquece que tem de criticar — e isso implica em entender que a crítica não é por sua essência, algo negativo. Desmistificar esse pensamento de que toda crítica deve “destruir” é importante para saber apreciar. Afinal, acima de qualquer outra questão, temos de ser capazes de perceber se a narrativa nos atravessa ou não. 

Então o que aconteceu no Motel? As pessoas acham que as coisas são incríveis porque representam algo, porque estão em um lugar de validação, ou melhor, porque foram indicadas a prêmios. Chegar lá é importante, mas ocupar esses espaços não deveria ser a principal forma de ser considerado relevante.

Não esqueçamos de perceber que essa logística de prêmio também faz parte do sistema. Essa validação dos detentores do saber artístico também é elitista e estadunidense.

Tá, Motel Destino é um filme que tem sua poesia estética envolvida por um visual incrivelmente local para mim.  E o Ceará é lindo mesmo. É um filme regional em suas falas, dizeres, sotaques e fazeres. Muito próximo do que pode ser o Ceará de fato. Mas isso não faz dele um filme arrebatador. E tá tudo bem pensar assim. 

Um bom filme, um bom destino. Mas não significa que é o único caminho. Senti que Motel Destino entrega um Ceará visual de suor salgado, mas ainda falta aquele reboliço, sabe. Aquilo que Bacurau (2019) causou na gente com toda aquela reviravolta, aquela né

Aquele silêncio filosófico gritante de Unicórnio (2018); a sensibilidade de um interior que foge da ideia caricata que Pacarrete (2019) nos presenteia; Aquele delírio político que Divino Amor (2019) traz, ou até mesmo o terror fantástico de As Boas Maneiras (2017) — todos filmes ignorados por Cannes. 

Motel Destino de Karim Aïnouz podia ter dito mais. Podia ter mostrado mais. Podia ter causado mais. Não falhou, mas também não será inesquecível.  



Artigo da autoria de Ícaro Machado