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Crítica

Paloma: que poder teria o inferno se as pessoas não fossem capazes de sonhar?

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Cartaz do filme "Paloma", de Marcelo Gomes. Mostra o perfil de uma mulher de pele morena, penteado alto e usando um véu de noiva com uma tiara dourada, sobre um fundo vermelho. O título "Paloma" está centralizado em letras brancas grandes, com a frase "um filme de Marcelo Gomes" logo abaixo em letras menores.
Para o diretor Marcelo Gomes, o filme é sobre a legitimação de nossas vontades, por mais ambíguas que sejam | Foto: Imagem de Reprodução

Baseado na história real de uma agricultora pernambucana que lutou contra preconceitos, ‘Paloma’, do diretor Marcelo Gomes, destaca a luta de pessoas trans por existência. A personagem ver a sua vida mudar depois de realizar o seu maior sonho. No país que mais mata travestis e transexuais no mundo, o filme se revela como um posicionamento político: pela história e pela produção.

Paloma — e eu vou repetir o seu nome incansáveis vezes —, lançado em 10 de novembro de 2022, foi produzido pela pernambucana Carnaval Filmes, em coprodução com a portuguesa Ukbar Filmes. O longa marca a estreia de Kika Sena (Paloma), arte-educadora, diretora teatral, atriz, poeta e performer alagoana, no cinema luso-brasileiro. 

O diretor pernambucano Marcelo Gomes tem um jeito muito particular de fazer cinema. Trazendo, sempre que possível, o sertão do seu estado para as suas narrativas visuais, Marcelo já nos presenteou com trabalhos documentais potentes. Como um bom diretor nordestino que se preze, segue sempre essa sua perspectiva “cronista” das histórias, enquadrando-as em ficções que se instauram nessa aurea questionadora que o documental traz consigo. 

Filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar (2019) e agora Paloma (2022), este último que se inspira num caso real, transposto para cinema por Gomes em colaboração com Gustavo Campos e com o meu conterrâneo aracatiense, Armando Praça (realizador de “Greta” e “Fortaleza Hotel”), são obras cinematográficas que apresentam o Brasil para o brasileiro.

A poesia com que o diretor se dedica ao captar as suas imagens para as transcrever em coreografias bailantes de luz, sons e diálogos é sublime. Uma poesia visual deslumbrante de um nordeste interiorano puramente humano — e isso implica em ser cruel. 

São produções como o longa-metragem Paloma que estão a cargo de possibilitar a ampliação desse espaço no audiovisual para atores LGBTQIAP+. Fui colher muitas informações e, em muitas de suas entrevistas durante a campanha do filme, a atriz Kika Sena agradeceu por cada travesti que, lá traz, lutou pelos seus direitos — e de milhares de outras que foram impedidas de brilhar. 

“Se nós já fomos interpretadas tantas vezes por pessoas não-trans, por que o contrário não pode acontecer?”, ela questionava em suas entrevistas. 

O Enredo de Paloma: Uma História de Muitas

A pernambucana Paloma está satisfeita com a simplicidade da sua vida ao lado da filha Jennifer e do namorado Zé (Rildson Reis). Mas, para se sentir completamente feliz, falta-lhe realizar um grande sonho: casar-se na igreja e ter o seu amor abençoado por Deus. 

Para isso, Paloma foi juntando dinheiro para o vestido e para a grande boda que idealizou ainda em criança. Mas quando chega o momento de marcar a data da cerimônia religiosa, ela esbarra com o preconceito da Igreja em relação à sua transexualidade — nada de novo ao sol.

Embora seja alguém que estima Paloma, a atitude conservadora (hierárquica) do padre faz parecer que o sonho dela é impossível. Mas a fé de Paloma é enorme. E nada a fará desistir dos seus intentos. Mesmo que o seu sonho seja capaz de alterar a forma como todos a veem na cidade. 

O mais potente nisso tudo, é que o roteiro partiu de uma notícia que o diretor leu num jornal sobre uma mulher trans que sonhava em se casar numa igreja católica com véu e grinalda. Além de Kik Sena e Ridson Reis, o filme apresenta nomes como os de Suzy Lopes, Samya de Lavor, Nash Laila e Anita de Souza Macedo. 

Até Onde Você Iria Para Realizar um Sonho?

O “barulho” do filme começa quando Paloma decide escrever uma carta para o Vaticano (Itália) na tentativa de realizar o seu sonho. Paloma é um filme tão inteiro. É rico em cenários de imagens infinitas e com um roteiro bem estruturado numa realidade tangente. Paloma é daqueles filmes que fazem a gente chorar de felicidade, ao mesmo tempo que faz a gente sentir o aperto que dá quando a gente não consegue realizar aquilo que tanto deseja.

Na verdade, o filme todo é um convite para a gente pensar: no que pode ser e acontecer de nós. Mas, acima de tudo, é sobre pensar quanto do amor pode atravessar a gente. E no medo que sempre sucede à realização de um desejo tão potente.

Um sonho de comprar uma moto nova num nordeste romeiro, cuscuz com ovo, plantação de mamão e “pau de arara” (transporte). A fotografia do filme te leva para o interior nordestino sem ser caricato. Uma das obras mais reais que pude conferir desde então: manga no chão, calendário na parede, santinhos, grafite de propaganda de água nos muros e tantos outros signos.

As músicas regionais escolhidas sabiamente fazem a sonoplastia do filme ganhar ainda mais voz nas cenas, ilustrando com muita harmonia todos os fatos que dão suporte à narrativa principal: o amor de Paloma. 

De relance, a obra me fez lembrar do filme The Danish Girl (2015), do diretor Tom Hooper. Um filme lindo, mas que, de tão focada em tornar-se Mulher, a garota dinamarquesa traz em sua tragédia uma questão biológica que talvez se perca no que de fato seja esse ser Mulher. Paloma é completa em todos os seus detalhes e verdade viceral. 

A Realidade Vista na Tela é Representada por Pessoas que Vivem isso Diariamente 

Um elenco com muita travesti — isso mesmo, a potência dessas mulheres artistas e guerreiras representando elas mesmas. O filme pede por sensibilidade para se perceber toda a sua semiótica: é uma militância visual pura, do início ao fim. Uma denúncia que grita para ser ouvida. 

Do namorado pedreiro do interior à filha que brinca de boneca; da sua relação com as amigas cis agricultoras, às amigas travestir do “bar das primas”. Paloma mostra a linha tênue entre fé e discurso de ódio: das humilhações no trabalho à indiferença sofrida por sua filha num simples banho de piscina. Para o diretor, o filme é sobre a legitimação de nossas vontades, por mais ambíguas que sejam. 

Reflexo da falta de oportunidade. Uma amiga de Paloma escreve a carta que ela dita como se fosse uma oração para ser agraciada pelo divino na tentativa de ser autorizada a casar — e isso me faz pensar sobre como às vezes lutamos para pertencer a um lugar que nega a nossa existência.

Para a igreja, não existe pessoa cristã, existe apenas homem e mulher, e toda a submissão do sagrado feminino ao poder do masculino que julga e culpa enquanto peca. 

Paloma é sobre a força que a fé emana: com uma mão, ela te abraça e com a outra impugna. No final — após chorar — chegamos à máxima do filme: o preconceito existe para destruir tudo de mais bonito. Ele é a nossa mais pura ignorância humana. Ele violenta todos os dias. Mas Palomas atrevidas resistem. 

Querem que Sejamos Apenas Números em Estatísticas 

Informação. Segundo o Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras (Antra – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 2023), 131 pessoas trans foram mortas no Brasil em 2022. Mulheres trans e travestis têm até 38 vezes mais chance de serem assassinadas em relação aos homens trans e às pessoas não-binárias.

A pessoa mais jovem assassinada tinha apenas 15 anos. Quase 90% das vítimas tinham de 15 a 40 anos.

Pernambuco, estado onde a história de Paloma foi capturada, surge no topo da lista dos que mais mataram a população trans em 2022, com 13 assassinatos no total; seguido de São Paulo que caiu da 1ª para a 2ª posição e do Ceará, que saiu de 4º para 3º em 2022, com 11 casos cada. Minas Gerais manteve os 9 casos do ano anterior e o Rio de Janeiro, que teve 12 assassinatos em 2021, fechou 2022 com 8.

Perfil das Vítimas

Dentre os 131 casos considerados nas análises de 2022, 37 fontes não traziam qualquer informação a respeito da idade das vítimas, tendo sido considerados apenas os 94 casos onde foi possível identificar a idade.

Os dados de 2022 apontam ainda que, 5 vítimas (5,3%) tinham entre 13 e 17 anos; 49 vítimas (52,1%) tinham entre 18 e 29 anos e; 30 vítimas (32%) tinham entre 30 e 39 anos; 7 vítimas (7,4%) tinham entre 40 e 49 anos; 2 vítimas (2,1%) tinham entre 50 e 59 anos; e 1 vítima (1,1%) com 60 anos. 76% das vítimas eram negras. 24% brancas. Os suicídios também foram mapeados — foram ao menos 20 casos no mesmo ano.

Sobre a Pesquisa 

O monitoramento e levantamento são feitos de forma quantitativa e qualitativa, visto que não existem dados demográficos a respeito da população trans brasileira que possibilite um cruzamento para indicar a proporção população trans em relação ao número de assassinatos com o intuito de traçar a proporção de casos/habitantes.

 

Artigo da autoria de Ícaro Machado 



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