Crítica
Joker: Um Delírio Cinematográfico Sobre Saúde Mental
As múltiplas violências na infância que levaram a uma vida adulta medíocre. O que deveríamos refletir com o segundo filme do Joker e, por que as pessoas ignoram que o longa é de fato um grande delírio?
Domingo combina com cinema. Ontem fui conferir todo esse desprestígio gratuito acerca do Joker. As redes sociais estão inundadas de decepções e críticas sobre o filme, que carregava o estigma de suprir a carência de entretenimento, cativando as pessoas que ansiavam por uma obra tão potente quanto a sua primeira produção, esta que rendeu um Oscar de melhor ator em 2020 para Joaquin Phoenix (Joker). O filme, campeão de indicações (11), ganhou apenas mais um Oscar, o de trilha sonora original.
E a academia não errou em dar a estatueta ao ator. Phoenix segue ainda mais potente em Joker: Folie à Deux. A presença e performance de corpo do ator assumem essa narrativa que transcende o diálogo, seja no dito ou no cantado. Toda respiração suprimida a cada trautear de verso desse reencontro com a trama melódica faz com que as músicas sejam ouvidas tal como os delírios oníricos são: surreais.
Musical é um género que estimo muito. Mas Joker: Folie à Deux está longe de assumir um lugar na minha prateleira de “grandes musicais” como Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street (2007), Les Miserables (2012), e até mesmo La La Land (2016). Estes, sim, são filmes cantados do início ao fim. E o grande público “odeia” isso.
Mas também entendi que este não é o objetivo da obra ao apoiar-se no “arquétipo” musical. A proposta, talvez, seja apresentar a arte enquanto terapia, e para isso, nos deu “visuais vibrantes” desses delírios fantasiosos do Joker, tornando-os ainda mais reais.
Folie à Deux, em resumo, apresenta uma narrativa que se sustenta em músicas, sim, mas esse não é o artifício principal do filme. Existe muito mais que isso: fotografia, textos estruturados capazes de trazer gatilhos emocionais — no público e nos personagens —, além de um discurso político acerca do descaso da saúde mental pública (ou não).
Não hesito em dizer que a principal tecnologia para se compreender o que se quer dizer é, de novo, a empatia de perceber o outro além de nós. Somos um emaranhados de circunstancias imorais tateadas pelas análises combinatórias dos milhares de acasos que nos trouxeram até aqui.
Joker: O Descaso Político e As Violências Clínicas
Uma em cada oito pessoas vive com alguma doença ou transtorno mental no mundo. Ansiedade e depressão são os mais comuns e chegam a representar 60% dos casos. Enquanto os jovens estão especialmente sujeitos à ansiedade, os mais velhos convivem mais com depressão, segundo dados do último Relatório sobre Saúde Mental no Mundo, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2023.
10 de outubro é considerado o Dia Internacional da Saúde Mental. E no ano passado, a Organização das Nações Unidas lançou o documento “Saúde mental, direitos humanos e legislação: orientação e prática”, oferecendo orientações sobre como uma abordagem baseada nos direitos humanos pode apoiar a transformação necessária nos serviços de saúde mental.
Para além de criar um documento educativo para um acolhimento profissional humanizado, as recomendações pretendem também aumentar a igualdade e a justiça nos cuidados de saúde e prevenir violações dos direitos humanos em ambientes de cuidados de saúde mental.
Qual o real impacto de uma mentira contada na infância? Maryanne (Catherine Keener), advogada de Arthur, consegue convencê-lo de que ele é uma pessoa doente. Ela faz um trabalho brilhante, diga-se de passagem. E é justamente essa personagem que está a cargo de trazer essa lucidez reflexiva sobre o descaso político e as violências clínicas enfrentadas pela “saúde mental”.
Todas as testemunhas de acusação confirmam, de alguma forma, que Arthur era uma pessoa inofensiva. Mas é justamente o colega Mr. Puddles (Leigh Gill) que deixa isso escancarado para quem quiser realmente saber que sim, Joker o mudou. Mas a sociedade prefere entender que foi sempre um só.
Ou seja, o tribunal monta todo o seu espetáculo, com televisão, plateia e jurados. Mas desiste do show quando o Joker decide assumir o palco. A ideia de dupla personalidade é ironicamente contrariada pela ineficácia de um sistema usurpador.
Lady Gaga: Uma Cura Pelo Amor
O filme traz essa Harley Quinn (Lady Gaga) diáspora que foge desse imaginário coletivo que colocava essa personagem feminina como uma mulher sexy louca e submissa. A destreza com que a artista consegue fazer surgir essa nova “Arlequina” é um dos pontos fortes do filme.
Como um fiel Little Monster, não acho que a Lady Gaga mereça uma indicação pela sua atuação neste filme. Ela entregou tudo, mas essa sequência de Joker não traz muita profundidade para a personagem, fazendo com que a sua Harley siga sendo apenas uma coadjuvante na história. Isso numa ótica de “tempo de tela”, porque os roteiristas nos contam outra coisa: só existe Folie à Deux devido à Harley Quinn da Gaga.
Mas é que a Lady Gaga consegue cantar tudo aquilo que os roteiristas pretendiam dizer: toda a simbologia de signos que ganham a tela numa sequência de delírios a três, se considerarmos o espectador como agente de ação. E o amor, como essa força capaz de “criar montanhas”, para não parafrasear o ditado, que diz mover.
Na volta do cinema, estávamos conversando, eu e o meu colega Pedro, sobre como a Lady Gaga consegue sustentar a sua identidade dentro dos papéis que recebe no cinema. Parece que as personagens interpretadas pela atriz conversam com ela de uma forma muito honesta. E com Harley não seria diferente.
Estrategicamente, além da trilha sonora oficial do filme, fomos presenteados com um álbum de Jazz — e experimentais, covers e afins — intitulado Harlequin. Antes disso, curiosamente, a cantora nos apresentou um videoclipe todinho novo para uma balada romântica que canta junto ao cantor Bruno Mars.
A música é Die With A Smile, cujo título é muito bem referenciado, ligando-se diretamente ao filme — não precisou de muito esforço para perceber as referências na maquiagem, o mesmo tom de vermelho, o cigarro e o formato televisivo do videoclipe. O single é potente e trouxe Lady Gaga para o topo das paradas novamente. Para já quem assistiu, ele também tem um certo gostinho de pós-filme.
Minha canção favorita no longa é o cover da música Close To You (Carpenters), interpretada pela Gaga numa das cenas que, para mim, é a mais envolvente do filme: “assim como eu, eles desejam estar perto de você”. Ela (a música) dialoga diretamente com essa ideia de mártir que o filme traz consigo, mas que o Arthur Fleck foge no final. Afinal, todo revolucionário é visto como louco. E muitos deles são engolidos por essa “loucura”.
Joker: Folie à Deux (“loucura a dois”)
O termo folie à deux (FAD) foi pensado em 1877 por Lasègue e Falret, embora Bairllager já tivesse descrito o fenômeno de “folie communiquée” em 1860. Lasègue e Falret publicaram um artigo intitulado “La folie à deux ou folie à communiquée”, onde apresentaram o conceito de contágio psiquiátrico, sugerindo que um indivíduo mais ativo e inteligente cria ideias delirantes, gradualmente assimiladas por um parceiro mais passivo.
Além disso, os dois devem viver em proximidade e relativo isolamento social, partilhando emoções e experiências que conectam o delírio à realidade. Segundo eles, ao separar o receptor do indutor, o delírio tende a desaparecer espontaneamente no receptor, o que indica a natureza reativa da psicose, desvinculada de causas endógenas ou genéticas.
Em 1942, Gralnick redefiniu a FAD como a transferência de ideias delirantes ou comportamentos anormais de uma pessoa para outras em contato direto. Ele criou um sistema de classificação com quatro subtipos:
Folie imposée, onde um delírio é transmitido de um psicótico para uma pessoa sem transtornos; folie simultanée, em que dois indivíduos predispostos desenvolvem delírios semelhantes simultaneamente; folie communiquée, em que após resistência inicial, o receptor adota o delírio, indicando verdadeira psicose em ambos; e folie induite, onde um psicótico é influenciado a integrar os delírios de outro paciente aos seus próprios.
Na Alemanha, o termo FAD foi adaptado por Lehman e Scharfetter para “psicose induzida”, e Jaspers, em 1953, admitiu a possibilidade de reações psicogênicas em esquizofrênicos, ressaltando que o contágio do delírio é psicogênico (Artigo completo).
A Era Digital dos Delírios do Eu: Como Lidamos Com Um Mundo Visual Tão Volátil?
A trama de Joker Folie à Deux não se limita a uma narrativa de um musical distorcido, mas se converte em uma crítica social incisiva, onde as cores vibrantes e as melodias sublinham a efemeridade do sentido e a precariedade da sanidade no mundo.
A dualidade do filme revela como Arthur e Harley Quinn se alimentam de uma cumplicidade tóxica, que questiona até que ponto somos suscetíveis às influências alheias. Se refletirmos um bocadinho mais, podemos dialogar como esse contágio emocional se espelha nessa hiper interação constante e prejudicial que temos com as redes sociais.
Nesses espaços digitais, compartilhamos compulsivamente nossas angústias e inseguranças, como numa versão moderna da “folie imposée”, onde nos tornamos simultaneamente indutores e receptores de delírios coletivos.
Essa cumplicidade doentia, tão evidente no filme, é refletida na forma como as redes sociais muitas vezes agravam a ansiedade e a depressão, encorajando a validação efêmera em vez de um suporte genuíno. E Joker: Folie à Deux evoca essa natureza fragmentada de nossa realidade atual, onde a linha entre o real e o imaginário é cada vez mais tênue.
Assim como no filme, onde Arthur e Harley dançam uma valsa trágica de influência mútua e autodestruição, as redes sociais também nos envolvem em um ciclo perpétuo de comparação, aprovação e desilusão, que se aproxima perigosamente de uma “psicose induzida” digital.
Ao nos debruçarmos sobre essa reflexão, entendemos que Joker: Folie à Deux não é apenas uma obra sobre um personagem traumatizado e uma garota que busca uma revolução, mas um espelho para refletir a nossa sociedade doente que mata, rouba e culpabiliza o outro ao nos corromper num sistema aliciador.
É verdade que Folie à Deux não consegue superar o primeiro filme, mas isso não quer dizer que esse aprofundamento na estória seja desnecessário. No final, não temos uma cena que marca o encerramento, mas sim a continuação de uma ideia pulverizada: viver requer coragem. Mas não há escapatória quando nasce.
Texto da autoria de Ícaro Machado