Crónica

ILHA

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Sempre que se quer pensar um sonho ou utopia sobre aquilo que não existe, as ilhas funcionam muito bem para traduzir algo que é ao mesmo tempo flutuante, mas que se pode precisar nos seus limites: lugares de refúgio e de amores, exóticos paraísos nos Mares do Sul, ou infernos de enclausuramento. Os mundos insulares, os mares ou os navios facilmente se convertem em mitos e transcendem o tempo e a geografia das coisas comuns.

Esta é a entrada de uma ilha no Vale de Campanhã. São outras ilhas estas. Quando os pobres ocorriam ao Porto em busca de trabalho e o salário era pouco mais que nada, quem tinha terrenos e uma porta de acesso à rua, construía barracos precários para arrendar por baixo custo e más condições a esse formigueiro pobre. Entre o rio, as pousadas de luxo, a marina, as casas aristocráticas e os bairros económicos ou as auto-estradas, persistem ainda ilhas que se desenvolveram em quintas e propriedades agrícolas que hoje se misturam num território onde domina a simultaneidade, a contradição, os tempos misturados, as memórias e as coisas novas que já nasceram desmemoriadas. O Largo de S. Pedro, a Rua da Levada, a da Granja…, são nomes ainda do tempo de uma ruralidade injusta, mal repartida entre casas boas e cabaneiros, no tempo em que se dizia hoje vamos ao Porto, se fosse esse o caso.

Vieram as pontes, as auto-estradas, o metro, as casas novas, os bairros velhos…, e a realidade estacionou encostada à crise e às expectativas. Uns pensam que este lugar é fabuloso e que basta uma vista para o Douro e um condomínio, e o terreno valerá milhões; outros cristalizaram nas suas reformas de miséria e na sua vida de dificuldades. Podem-se pagar três ou quatro euros de renda por uma casa. Casa, é uma maneira de dizer, claro. O senhorio, amálgama de herdeiros que concorda apenas em limpar o terreno para guerrear as partilhas da miragem da ilha do tesouro, não faz obras nenhumas, mas também não sobe as rendas; quando alguém morre ou sai, fecha-se o barraco. Os inquilinos vão fazendo pequenos melhoramentos, resolvendo podridões e água que pinga e compondo toda aquela fragilidade onde a construção mais robusta é o chão de pedra da eira que ali havia. Enquanto não acontece nada, o lugar vai-se esvaziando e segue a realidade em suspenso. Quando chove, enchem-se bacias de água para regar hortas em tempos de seca.

Triste sorte. Não haverá uma máquina de gerir naufrágios ou transformar ilhas e arquipélagos onde a felicidade nasça com o sol? Hoje vamos ao Porto?

 

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