Crónica

DEVERÍAMOS SER TODOS MAIS GATOS

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Há dois dias atrás foi o Dia Mundial do Gato, e tal como o dia dos namorados, que também foi há uns dias, este aqui tem uma importância relativa. Assim como qualquer pessoa pode aproveitar os chocolates em promoção no dia de S. Valentim, qualquer pessoa pode ficar mais bem-disposta se tiver à sua frente um feed de facebook como o meu no passado dia 17. Para onde quer que olhasse, havia fotos de perfil com gatinhos, partilhas de desenhos de gatinhos, artigos e posts sobre gatinhos… Foi uma amálgama de pêlo, orelhas pontiagudas e piadas sobre como era amar um bicho egoísta e interesseiro. Foi um dia feliz.

No meio de tudo isso, porém, encontrei um artigo que me interessou. “O que poderia levar um gato a atacar de repente a mão do dono, principalmente quando ele está a receber festas e até parece feliz, ronronando lá no seu paraíso de gato?”, prometia responder o título. Parece o tipo de artigo que interessa a quem tem gatos há pouco tempo e ainda os tenta conhecer melhor. Contudo, eu tenho uma gata especial, então claro que pensei que aquilo me podia ajudar. Assim, abri o artigo, já a tentar imaginar alguma informação concreta e toda científica enquanto a página carregava, algo que me ajudaria a entender por que motivo ela me atacava e só depois começava a abanar a cauda, e fugia da minha beira a bufar-me. Mas desiludi-me. Aparentemente a minha gata continua só a ser parva.

Bom, a verdade é que, segundo o artigo, não se sabe bem o que leva gatos ronronantes a atacarem do nada o responsável pelo seu ronrom. Supõe-se que uma hipótese seja eles não gostarem de se sentir assim tão felizes no nosso colo, submissos frente ao poder da Coçadela de Queixo. Nessa situação, o gato ataca para que nós não esqueçamos que ele ainda é o nosso dono. Por outro lado, há quem diga que o gato nos ataca por nossa culpa. No fundo, ele gosta das festas e até pode gostar de nós, mas há ocasiões em que lhe fazemos algum tipo de miminho de que o ele não gosta e aí começa a tentar indicá-lo. No entanto, como não fala, e nós dificilmente reparamos no que nos quer mostrar, continuamos a esfregar-lhe o pêlo enquanto ele se vai irritando connosco, em silêncio. Isto dura até que ele se irrita tanto que resolve atacar-nos para ver se paramos de o incomodar ou magoar, e isso finalmente resulta, porque é ele que nos incomoda e magoa agora, e nós deixamos o bichinho em paz pelo nosso bem.

O problema vem depois, na nossa reação e forma de ver as coisas. Começamos a reclamar e a chamar-lhe ingrato, falso, mau. E isto porque a culpa é toda do animal, obviamente, não nossa, que ignoramos tudo o que ele nos andou a indicar ao abanar a cauda, a retrair as orelhas e a encolher-se, em vez de nos dizer de alguma forma MUITO mais clara que estava insatisfeito. Maldito gato falso que nunca diz que está zangado.

Portanto, qual foi a grande lição a retirar do artigo? Maldito humano que não presta atenção aos outros, sim. Compensou imenso a leitura, pois foi uma fonte informação extremamente valiosa, sem dúvida. Nunca na vida tomaria algo como “Tem um bocadinho de noção e não faças algo que os outros te dizem e te mostram que os irrita” como garantido.

E foi aí que percebi. Este tipo de conselho, aplicado a gatos, mas principalmente aplicado a humanos, não é assim tão parte do senso comum. É por isso que fingimos que não notamos o nervosismo e o desconforto de um amigo que foi arrastado por nós para um ambiente onde não se sente bem, porque não queremos ir embora. Optamos por ignorar os sinais e forçar as situações a durarem mais um bocadinho por nós, porque estamos confortáveis. Os gatos não ignoram quando um deles está desconfortável, pois respeitam-se como espécie. Nós não. Nem a nós nem aos gatos, por isso é que há artigos assim.

Porém, ainda há situações opostas no caso dos humanos, e é aqui que entra a minha gata. Recorrentemente, temos artigos nas revistas como “O que ela quer realmente dizer quando te diz que não há problema nenhum” ou “Como fazer a tua amiga perceber que aquele vestido não lhe fica tão bem sem a ofenderes”. Para os humanos, não é senso comum fazer um esforço por interpretar pistas e respeitar o outro, porque isso dá trabalho, mas parece senso comum escondê-las, para dar trabalho aos outros. A minha gata entra aqui porque ela não encolhe as orelhas nem se mexe. No entanto, de repente, a minha mão vira um queijo suíço com tanta marca de dente que eu tiro-a rapidamente do alcance dela. Ora, só nessa altura é que ela mia de uma forma que assusta e começa a agir enfurecida comigo, bufa, ataca o ar e foge. Por isso é que eu digo que a minha gata é parva. Ela é absolutamente imprevisível. É um cliché de gato. E vou aceitando porque, coitadinha, ainda não sabe falar e explicar-me o que se passa.

Mas entre humanos isso não é bem assim. As pessoas discutem, porque não são honestas nem dizem o que pensam, quando podem muito simplesmente resolver tudo com duas palavras. Podem dizer “Desculpa, não gosto que fiques a monopolizar o comando da televisão. Podemos ver uma coisa que interesse aos dois e quando estiveres sozinho vês isso da Quinta? Dá para gravar”, em vez de amuarem durante duas horas a ver gente a limpar porcos quando isso não lhes interessa nada. É que depois, quando o marido pergunta o que se passa, respondem com um belo “nada, está tudo ótimo”. E claro que ele vai insistir que não sabia que ela estava aborrecida, que achava que ela também achava as galinhas divertidas, e ela vai dizer que a culpa do mal- entendido é dele, porque ele não entendeu o silêncio dela e vai ficar chateada durante dois dias. Nem vai considerar que podia ter perguntado ou pedido para mudar de canal.

Quem faz isso é tão parvo quanto a minha gata. Os gatos normais abanam a cauda antes de atacar, abrem os olhos e olham para as pessoas com mais desprezo do que o normal quando estão chateados. Tentam comunicar à maneira deles. Todos nós deveríamos ser mais gatos nesse aspeto.

As pessoas deveriam prestar mais atenção ao que supostamente faz parte do seu senso comum, e deveriam usar e abusar das suas capacidades de comunicação. Abanem a cauda, falem com os outros. Não podem indignar-se por ninguém vos respeitar se não dizem onde estão os limites que querem ver respeitados.

Eu posso habituar-me à minha gata parva, porque não posso conversar com ela para que a nossa relação evolua e nos entendamos melhor. Ela não tem planos para se dar melhor com outras pessoas, portanto o esforço tem de provir de mim. Mas quem quer manter amigos por perto e prefere explodir em cima deles depois de acumular raiva sem dar qualquer tipo de pista que desse conta do seu desagrado, só cria problemas desnecessários. Quem faz isso devia ler mais artigos para gatos ou mesmo adotar um, pois gatos podem ensinar a esses parvos uma ou duas lições para que sejam humanos com mais sucesso.

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