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Crónica

DA CONDECORAÇÃO DOS MAUS E DA PARTIDA DOS BONS

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1.            Cavaco Silva está, felizmente, prestes a sair de cena. É uma pena que se tenha tornado interventivo agora, que está apenas em gestão, sobretudo quando o quase ex-presidente decide condecorar um tal de Sousa Lara. Para aqueles que não estão recordados, convém sempre lembrar os erros, na vã esperança que eles não sejam cometidos novamente. Corria o ano de 1992 e Saramago tinha publicado o seu O Evangelho Segundo Jesus Cristo. A candidatura de Saramago ao Prémio Literário Europeu com este livro foi recusada pelo governo de Portugal, na pessoa do Sr. Sousa Lara, subsecretário de Estado da Cultura. Se estão lembrados, esse governo era chefiado por um outro ser aculturado, Cavaco Silva, o mesmo que agora vem condecorar o seu “súbdito”. A decisão de Sousa Lara violou o princípio da laicidade do Estado, impediu que a cultura portuguesa competisse ao mais alto nível europeu e acabou por levar à emigração-com-sabor-a-exílio de Saramago.

Sousa Lara não prestou qualquer tipo de serviço ao país que mereça esta condecoração. O facto de ela ser atribuída por um indivíduo que chefiou o executivo integrado no qual Sousa Lara supostamente se terá distinguido deveria ser motivo de vergonha para ambos, pela clara parcialidade da decisão. Creio que se deveriam regulamentar as condecorações para impedir estes auto-elogios descarados, e seria bom que Cavaco Silva parasse de manchar a sua carreira política com decisões claramente contra os interesses do país. Quanto a Sousa Lara, que ainda hoje está convencido de que fez um bom trabalho, não há muito a fazer – perdoai-lhe, pois não soube, nem sabe, aquilo que faz.

 

2.            Na semana em que aberrações como a supracitada acontecem, perdemos também um vulto da Cultura mundial, alguém que prestou grandes serviços à humanidade através de uma obra gigantesca e de um caráter inspirador. Aos 84 anos, deixa-nos Umberto Eco, um intelectual capaz de apreciar a vida nas suas múltiplas dimensões, produtor de tratados sobre semiologia e, simultaneamente, de ensaios sobre a obra de Ian Fleming, criador da personagem James Bond, ou curador de uma exposição sobre listas, exibida no Louvre em 2009.

A propósito desta exposição, em entrevista ao Der Spiegel, Eco fala-nos sobre a relação do homem com a morte: “We have a limit, a very discouraging, humiliating limit: death. That’s why we like all the things that we assume have no limits and, therefore, no end. It’s a way of escaping thoughts about death. We like lists because we don’t want to die.”. Com Eco, a morte chegou aos 84 anos, permitindo-lhe tempo para desafiar seriamente os limites do conhecimento, reunindo uma obra notável e inspirando várias gerações de apaixonados pelo saber.

A ideia mais marcante que Eco me passou foi a de “antibiblioteca”. Este conceito prende-se com as potencialidades que uma biblioteca cheia de livros ainda não lidos representa. No fundo, ter uma grande biblioteca é ter uma reserva gigantesca de energia potencial, pronta a ser convertida em conhecimento. Eco tinha uma biblioteca com dezenas de milhares de títulos sobre variadíssimos assuntos e garantia saber a localização de cada livro em específico. Quando lhe perguntavam se já tinha lido todos aqueles milhares de volumes, respondia com o seu apurado sentido de humor: “Não, estes são os que tenho de ler até ao final do mês. Os lidos estão no meu escritório”.

Na entrevista acima referida, Eco deixa-nos um interessante conceito: “What does culture want? To make infinity comprehensible.”. Não ficaria mal dizer o mesmo do próprio, que esteve bem mais perto de o atingir que o comum dos mortais.

3.            Partem os bons, ficam os maus. A história encarregar-se-á de dar o destaque a quem o merece.

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