Crónica

DAS TOURADAS, COM TOUROS E SEM ELES

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1. Esta é uma semana boa para os estudantes da Academia do Porto. Após alguns anos de luta, encabeçada sobretudo pela AEFLUP, acabou finalmente a Garraiada da Queima das Fitas. O Magnum Consillium Veteranorum, esse órgão altamente representativo dos interesses da academia, democraticamente eleito e com possibilidade de ser integrado por qualquer estudante matriculado na Universidade do Porto (espero que saibam reconhecer a ironia), deliberou a não-realização da Garraiada em 2016, mesmo antes de a FAP se pronunciar sobre o assunto.

Estamos em 2016. Ataques à liberdade como os que aconteceram recentemente em Hong Kong ou em Angola, com Luaty Beirão, são vividos intensamente pelos estudantes. Assim, espanta-me muito a forma como um organismo retrógrado e corrupto decide o rumo das atividades da Queima. Quando os jovens se regem desta forma, como podemos esperar que no “mundo dos adultos” haja honestidade e integridade?

2. Marcelo Rebelo de Sousa vai tomar posse na próxima semana. Durante a campanha eleitoral (e até antes) sempre tentou afirmar-se como um defensor da cultura. Dou até um exemplo: quando, numa semana terrível para Portugal, partiram Herberto Hélder, Manoel de Oliveira e José Silva Lopes, Marcelo criticou o facto de a cultura só ser notícia quando alguém morre.

Tudo isto apontaria para uma grande ação em prol da cultura. Ora, temos aqui um problema: cada um define cultura como lhe dá jeito. E a minha definição de cultura é claramente diferente da de Marcelo, que decide convidar para atuarem na tomada de posse “artistas” como Anselmo Ralph, Diogo Piçarra e HMB. Vamos continuar a ter um presidente que só dá destaque cultural a epifenómenos de consumo fácil e imediato – uma espécie de Cavaco, mas mais refinado. Esta tomada de posse será, portanto, uma espécie de tourada, uma atividade aparentemente espetacular e espalhafatosa mas que, espremida, vale zero.

3. Assisti, no passado fim-de-semana, a um dos melhores concertos da minha vida. Dois artistas a cantar e a transpirar em português e a deixar o Coliseu do Porto a abarrotar com gente de todas as faixas etárias e classes sociais, completamente eufórico. António Zambujo e Miguel Araújo já têm uma, digo, várias páginas garantidas na história da música portuguesa.

Sinto uma enorme necessidade de fazer aqui um elogio público a Miguel Araújo Jorge, guitarrista dos Azeitonas e sete-instrumentista numa genial carreira a solo. Se António Zambujo se queixou de não ter o “pacote completo”, por ser apenas um extraordinário cantor e um suficiente guitarrista, Miguel Araújo não tem esse tipo de limitações. Compõe como poucos, escreveu algumas das melhores letras da música portuguesa, domina a guitarra e outros cordofones (incluindo as cordas vocais), arranha o contrabaixo e o piano, e consegue reunir todas estas qualidades com uma naturalidade quase irritante.

O seu primeiro trabalho, “Cinco Dias e Meio”, foi um exemplo de como um músico, de forma instrumentalmente simples, consegue produzir um álbum que vale pela qualidade das suas canções, da faixa 1 à 11. Seguiu-se “Crónicas da Cidade Grande”, uma produção engrandecida pelos arranjos de João Martins, que veio provar que o Miguel não foi um “one-hit wonder”, se dúvidas ainda houvesse. Finalmente, estes 17 Coliseus esgotados, com uma companhia de luxo, confirmam o Miguel como o artista musical mais completo da sua geração e um dos mais completos que Portugal já viu ou irá ver. Se querem realmente defender a cultura portuguesa, esqueçam as touradas e comecem a prestar o devido reconhecimento a estes gigantescos homens.

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