Crónica
ESTAREI LOUCO?
Há cerca de um ano morreu Herberto Helder. Desde então, os espoliadores farejam a oficina em busca de papéis, fotografias, correspondência, amuletos talvez, uma possível dentadura postiça que explique o mecanismo:
esta é a dentadura do poeta, com isto mordia a língua e saía da pena “Aiiii”
um segredo, enfim, um segredo e muita tinta que ainda possa valer algum dinheiro depois de tantas edições esgotadas,
já que o poeta está morto, e disso ninguém o livra, façamos ao menos o nosso que ele não quereria que passássemos fome
e não esquecer a grande missão que a Porto Editora, empresa especializada na arte do manual escolar e na arte do Herberto, está a fazer pelo património cultural nacional
que o país tem grande interesse em conhecer o poeta, por isso o editamos tanto agora como editaremos no futuro, O CAMINHO PARA A EXCELÊNCIA DO ENSINO E DA POESIA HERBERTIANA,
novo slogan, estou mesmo a ver, os preços de venda exorbitantes: os manuais e os livros do poeta, velho hábito editorial, e ainda dizem que, daqui a uns tempos, vem uma atualização do poema contínuo, a viúva do poeta lá deve ter que ganhar o dela, tão pobre, tão coitada,
tão pobre, tão coitada
e o arquivo deixado tão pequeno, tão pouco rentável, dizem que pouco mais que duas mil páginas…
tão pequeno, tão pouco rentável
a ser sugado até ao tutano, até já não restar osso e estar tudo publicado, se necessário
até se inventam umas rimas, e já agora, ó Olga, ele antes de morrer não limpou o rabo a algum papel, se for preciso também isso se publica que temos que ganhar o nosso.
“– Doutor, estou louco – disse. – Devo estar louco.
– Tem loucos na família? – perguntou o médico. – Alcoólicos, sifilíticos?
– Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. Estarei louco?”
Herberto Helder, Os Passos Em Volta