Crónica

(ÀS VEZES) SOMOS TODOS MÍOPES

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Vai ele a andar na rua, no passeio como alguém civilizado. Com aquela sua postura, de quem anda sempre imaculadamente vestido. De headphones, para mostrar ao seu filho que também segue as tendências. A música clássica entra pelos ouvidos e, apesar de estar alta, começa a ouvir uma voz que se mistura sem pedir licença.

“Oh, tu aí, pára! Ouviste? Pára!”. Ignorou, porque de certo que não era para ele. Deu alguns passos e, desta vez, destapou um dos ouvidos. “Oh engravatado!”. Era demasiada coincidência, voltou-se para trás. Vem já alguém a andar na sua direção, com ar de quem já estava farta de chamar por ele. Ao voltar-se, uma mulher de avental, com uma bacia na cabeça e as mãos na anca o encarava. “Tem um pedaço de papel no sapato homem! Tenha um bom dia”. Olhou espantado e lá tirou o pedaço de papel que, como todos os bons pedaços de papel, passam de pé para pé, até se descolarem do calçado. Seguiu viagem humilde e contagiado com a simpatia que aquela vareira lhe tinha demonstrado.

Do outro lado da rua, um pedinte escondia-se num beco, não queria incomodar ninguém. Mexeu-se e o cartão que o tapava saiu do sítio e revelou-o. Uma jovem passava e, ao vê-lo, engoliu em seco e deu-lhe uma sande de queijo que tinha para o seu lanche.

Longe, um grupo de miúdos anda a visitar doentes acamados e entregam um pássaro de papel que significa felicidade aos que o recebem. Levam também esperança, companhia e um abraço.

Na esquina, à porta do supermercado, alguém pede bens alimentares a quem entra, entregam a saca, dizem obrigada e sorriem sempre, mesmo com uma resposta mais áspera.

Dois namorados animam a rua com uma guitarra e uma voz, a rapariga tem também uma pandeireta. Decidiram que o que ganhassem iam usar para dar a um outro amigo que está a passar um mau bocado.

Um grupo de amigos marcou um dia e uma hora. Combinaram que depois de todos estarem livres num final de dia iam distribuir comida pelos sem-abrigo que encontrassem no seu caminho. Cada um leva uma sande, uma peça de fruta, um chocolate, uma água e uma mensagem.

O homem do papel no sapato chega a casa e janta com a família. Mais tarde, sentado no sofá com o seu computador no colo, assina uma petição da Amnistia, partilha com os amigos e fala aos filhos do assunto. No dia seguinte, os filhos falam também disso aos amigos, a um professor ou ao funcionário do bar.

Às vezes somos míopes, não vemos que ainda existem “coisas boas” no meio disto tudo. Vamos todos juntos ao oftalmologista.

 

 

 

 

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