Crónica
QUANDO ABRIMOS UM LIVRO
Poucos são aqueles que nunca leram um livro de início ao fim. De igual modo são poucos aqueles que nunca se viram arrastados para dentro do enredo de uma aventura literária. A mesma parcela de poucos são aqueles que nunca se alhearam da sua realidade material a partir de um livro. Trata-se talvez da única coisa material que nos leva a viajar de forma tão profunda por mundos tão rebuscados e únicos.
Tudo começa numa mente como a de todos nós. Tudo começa numa compilação e interligação de ideias e conceitos de um certo tipo que as decide desenvolver num conto. É ele que possui o condão de liderar o rumo dos acontecimentos dos diversos intervenientes. Se há algum ateu literário, que rapidamente se convença de que há figuras sobrenaturais a orientar esse rumo. É o papel do autor. Um elemento que, embora passe despercebido, desenha as estradas de uma cidade que pode ser englobada por diferentes mundos.
É talvez incontável a vastidão de conjeturas que são feitas pelo leitor. Desde um romance a um policial a um drama a um suspense, são inúmeros os cenários e os desenhos cozinhados na mente. É de uma peculiaridade tremenda essa capacidade de arquitetar esses contextos, com as personagens a assumirem figuras ligeiramente diferentes e com cenários que vão variando na cabeça do leitor que se torna ouvinte do seu pensamento. O livro estimula, reforça o poder criativo, leva-nos a fazer viagens sem necessitarmos de um passaporte. O livro é o ingresso mais rico para uma travessia pelos mares onde militam as palavras, as frases, os parágrafos, os capítulos. Todos estes orquestrados com um dado valor semântico e estrutural, dando origem à tal aventura louvada por tantos.
Por vezes, quando se está perante um ávido leitor, sente-se que se está perante um alguém viajado, experiente, maduro. Pode até nunca ter saído do seu país de residência ou ter arriscado em viagens intra ou intercontinentais. Todavia, a expansão do seu pensamento e do seu sentimento encontra-se num ponto de extrema particularidade. Muito tem para contar e muito compõe no seu singular imaginar. É com naturalidade que o seu interlocutor assume o papel de curioso ouvinte e se debruça com a audição sobre milhares de aventuras que tem a apresentar. Conjugação de mundos, em que satélites se cumprimentam e trocam personagens, formulação de hipóteses com maior ou menor teor de realidade, criação de uma parafernália de aparições do leitor na fictícia realidade. Tudo isto faz parte.
Quando abrimos um livro, somos dominados pela incógnita. Entramos com as habituais cautelas, tentando perceber do que é feito o trajeto da obra. Subitamente, damos por nós nas profundezas de um novo mundo. O leitor é, deste jeito, um emigrante. Um daqueles que não precisa de ir carregado de malas, mas sim de uma predisposição livre e flexível para novas experiências, novos contactos. O leitor vive e sente a obra como sua, como se dela fizesse parte. Eis a tal magia do livro.