Crónica
O DEUS DAS PEQUENAS COISAS
Ao lado das grandes narrativas e cenografias sobre o património excecional da humanidade (de toda), prolifera agora o deus das pequenas coisas. O deus das pequenas coisas vive numa infinidade de objetos e encantamentos que se espalham pelo território e pelo imaginário individual e coletivo, fragmentos de um tempo perdido, testemunhos de vidas repetidas, dos trabalhos e dos dias.
O material de construção destas memórias em ruínas é o mundo rural, ou melhor, a nostalgia, a resignação ou a mágoa da perda de um paraíso mitificado, entretanto transformado em ficção retrospetivada de um desejo de futuro por vir que seja menos incerto e ameaçador.
Este sentimento indefinido fixa-se em lugares e universos reduzidos, por vezes quase individuais ou de pequenos grupos e é então que o mundo se magnifica e se preenche de génios como as divindades domésticas de outros tempos que guardavam os lares, as fadas do bosque, das esquinas dos caminhos, das nascentes ou dos rochedos.
Nestes pequenos mundos não cabem sentimentos abstratos de nações, Estados ou sociedades onde o sujeito ou o indivíduo se dissolvem na massa ou num vago sentimento de pertença. Ao mesmo tempo, a impossível aldeia global entretanto transformada em selva é campo fértil para o regresso da aldeia local, coisa mais próxima, mais tocável e mais sentida. Essas memórias disseminadas convocam a comunidade como sua guardiã e seu horizonte mítico. Por sua vez, a comunidade que explodiu ou quase, constrói uma consciência de si em torno destes tótemes, verdadeiros símbolos da invenção de uma ancestralidade ou perenidade que possa combater o excesso de presente que existe e a sensação de que dura muito pouco aquilo que normalmente se chama estabilidade e o efeito securizante que produz.
Mais um passo e a comunidade imaginada inscreve-se numa ideia metafísica de comunidade das origens, harmoniosa, incorruptível, fraterna – um lugar cálido e confortante à volta da lareira como escreve Z. Bauman[2]. Esta busca por laços fortes de pertença e identidade tem, no entanto, um senão: a segurança e até o sentimento de refúgio que a comunidade confere, cobram um alto preço de limitação de liberdade às fonteiras que essa comunidade não deixa calcar ou ultrapassar, sejam éticas, morais ou estéticas. No limite, um indivíduo hiperbolizado pelas certezas, princípios ou ortodoxias da sua comunidade de pertença, da sua tribo, pode transformar-se num tirano, ora arredado de um mundo que recusa, ora em contínuo estado de confrontação com esse mundo e suas outras comunidades. Quero dizer, repescando a visão tradicional dos sociólogos, que é impossível imaginar uma sociedade como somatório de comunidades – seria um imenso e problemático arquipélago, uma manta de retalhos descosida.
No entanto, o sentido corrente de comunidade é bastante mais débil e rarefeito e, por isso, funciona ou parece funcionar. Serve, sobretudo, para nomear certas identificações e pertenças de um indivíduo (mas num contexto de referenciações variadas e, portanto, de inscrição em múltiplas comunidades), ou para criar algumas ilusões e recursos simbólicos capazes de ultrapassar tensões e divisões ameaçadoras da coesão mínima que um coletivo tem que possuir para que se reconheça como tal.
A comunidade é sobretudo uma heurística, um dispositivo narrativo, uma mitologia, uma crença ou um esquema para penetrar a galáxia infinita da sociedade e tentar entender-lhe as suas dobras, feitios, convulsões e contradições. Convém, no entanto, lembrar que a comunidade tanto pode designar uma irmandade harmónica que se constitui como refúgio para a precariedade, a incerteza ou a perplexidade face ao mundo, como, com a mesma força, pode designar a quadrilha dos estripadores. Nos dois casos, o mesmo resultado: uma marcação nítida entre nós e os outros. Assim são as comunidades.
Multipliquem-se então as comunidades, seja lá o que isso for, umas com claras inscrições territoriais, outras em torno de causas, crenças ou consumo de vegetais. Que não se esqueçam, porém, que os caminhos enlameados, a neve, as portas e janelas sem paredes, as marquises de alumínio, as alminhas e as lâmpadas são, entre muitas outras coisas, património da humana condição, da sua diversidade cultural e, neste caso, da própria identidade dos lugares.
[1] O título veio de empréstimo do livro de Suzanna Arundhati Roy. O seu primeiro livro, “O Deus das Pequenas Coisas”, foi publicado em 1997 e recebeu o Booker Prize de 1998.
[2] Zygmunt Bauman (2000 ), Community: Seeking Safety in an Insecure World, Polity Press, Cambridge (UK).
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