Crónica

NA AMÉRICA LATINA #4

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Partir para sempre é uma sensação muito triste. Mesmo partir para projectos entusiasmantes, para sonhos que sempre existiram, para algo que se sabe que se vai desfrutar ao máximo. Quando se parte para sempre, não são os sonhos que pesam no momento da despedida, mas sim a nostalgia, a angustiante divisão entre o desejo de partir e o que nos prende sempre a algum lugar. Mesmo que a partida já esteja programada desde a chegada, fica sempre a sensação de que se parte para perseguir os nossos sonhos e de que quando se parte se abandonam pessoas. É a sensação de se estar a abandonar alguém só por um objectivo que, no limite, pode parecer egoísta, é a amarga sensação que nos prende os lábios e deixa o sorriso pela metade e claro, nos molha os olhos quando se dá abraços a pessoas que provavelmente não vamos voltar a ver.

É verdade, dois meses no Equador passaram a voar. Parto agora para a verdadeira viagem pela América Latina, agora sim de mochila às costas em direção ao desconhecido, sem um roteiro previamente definido e só com a certeza de que no dia 20 de Junho parto de La Paz, na Bolívia, rumo a casa. E, claro, com a certeza de que vou passar duas semanas no Perú com os meus pais, que vêm para que mate saudades.

Resumir estes dois meses nao é fácil. Comecando pelo país: o Equador. É um país pequeno dentro do tamanho normal dos países na América do Sul. Está dividido pelos Andes em três zonas completamente distintas: a costa e as suas praias paradisíacas, com as suas vilas tranquilas, o peixe e o marisco em abundância, o calor e os muitos mosquitos; a serra e a sua paisagem seca de montanha, o frio, as montanhas com neve, os muitos vulcões e os indígenas que se escondem nos seus chapéus; e o Oriente, ou a Amazónia, a selva, verde, esplendorosa, onde está o parque com maior biodiversidade no mundo (Yasúni), zona onde eu só dei uma espreitadela e que espero conhecer melhor no Perú ou na Bolívia.

Devo confessar que dois meses deixam a sensação de trabalho incompleto. Sensação essa que não creio que seria diferente se decidisse ficar mais um ou dois meses. Aqui, percebi que só um trabalho longo e continuado faz verdadeiramente a diferença e permite deixar uma forte marca. Ficando dois meses, ganhei muito mais do aquilo que dei.

No meu caso, ganhei uma visão totalmente diferente da medicina. Bem, nao digo totalmente diferente, mas digo mais completa. A medicina são as pessoas. As pessoas e nada mais do que as pessoas. Não há outro objectivo nela e tudo o que na medicina não é feito a pensar no bem-estar das pessoas não é medicina. Um bom médico  conhece os seus doentes. Preocupa-se mais com eles do que com uma consulta ou uma receita. Não descansa se não souber que está a fazer o máximo por cada um dos seus pacientes. Cumprimenta-os na rua, pergunta-lhes não só pela saúde, mas pela vida, pela família, pelo trabalho. E nada do que é a vida do doente lhe é indiferente. Trabalha todos os dias para, não só curar as suas doenças mas para criar o seu bem-estar. Revolta-se com as suas injustiças, comove-se com as suas tristezas, festeja as suas alegrias. E o que recebe em troca é tão recompensante! São sorrisos, carinho, amizade, abraços!

Bem, sei que ao fim de dois meses estou no caminho certo para tentar continuar  tudo isto que parece algo utópico. Se for pelo menos, um bocadinho assim, como médica já terá valido a pena.

Agora, parto para a segunda parte do sonho: viajar. Andar sem rede no meu trapézio, como observadora de tudo, absolutamente novo, todos os dias, cheirar, saborear, ver, tocar tudo, conhecer pessoas, ficar maravilhada cada vez mais com a vida, sonhar acordada, caminhar sem parar, correr de autocarro em autocarro, dormir pouco porque perder cada minuto é um desperdício de minutos!

Quito deixa boas memórias. Muitos amigos, um trabalho de que gostei muito e que me incentiva para coisas parecidas no futuro, muitos pacientes com quem criei relações de carinho. Como despedida, fui almoçar a casa de Gloria e da sua família; uma senhora hipertensa que tem um restaurante no mercado. E não é por acaso que o seu restaurante é sempre o mais concorrido! Saímos a rebolar e com algumas lições de como cozinhar comida equatoriana. E passamos a tarde toda a contar histórias e a aproveitar a guitarra e o teclado que tinham em casa. Foi o estômago e foi o coração cheio e a certeza na partida de que as pessoas valem a pena.

A próxima crónica já será uma descrição de todos os autocarros, de todas as paisagens, de todas as pessoas, de aventuras e desvarios. Seguem-se duas semanas no Equador a conhecer mais um restinho do pais que me falta! E depois ala para o Perú, Bolívia e o continente que me espera!

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