Crónica
NA AMÉRICA LATINA #5
Uma camioneta de 26 horas desde Guayaquil até Lima foi o melhor local possível para escrever uma nova crónica. Se bem que, depois de duas semanas de viagem e de quase tantas noites em camionetas nocturnas como em hosteis, dormir nesta camioneta já será muito mais fácil.
A vida de viajante é uma vida que me deixa genuinamente feliz. Há qualquer coisa no acto de pôr a minha mochila gigante às costas e subir ao próximo autocarro para desbravar novos caminhos que me enche de alegria. A viajar, todos os problemas, todas as preocupações são esquecidas. E são esquecidas porque há tanta coisa a acontecer, tantas coisas novas ao mesmo tempo, que o cérebro só pode dar atenção ao momento presente. E viajar é isso: sugar cada acontecimento do presente, fixar cada pessoa diferente, cada casa, cada rua, cada paisagem. Prestar atenção a cada pequeno pormenor, ter os cinco sentidos alerta, vendo, ouvindo, provando, cheirando, sentindo tudo.
As minhas primeiras duas semanas de viagem “a sério” tiveram praias paradisíacas só partilhadas com enormes fragatas que faziam descidas a pique para o mar quando viam um peixe, cavalgadas na montanha e subidas a vulcões de 4800 metros. Saindo de Quito, apanhei uma camioneta nocturna para Puerto Lopez, pequena vila de pescadores e fragatas, em que começa o parque nacional Machalilla, com as suas escarpas e praias desertas de areia branca e vegetação seca. Soube bem estar sozinha na praia com os milhares de caranguejos, sentar-me numa esplanada a comer ceviche e dormir numa rede do meu hostel.
Daí, segui para Montañita, a praia surfista do Equador. Viajar sozinha tem muitas vantagens, que só são descobertas por quem o faz realmente. Viajar sozinha, para além de me garantir uma independência total, faz com que esteja muto mais disponível para novas situações e novas pessoas. E faz com que as pessoas queiram fazer-me companhia. Ao viajar sozinha, encontram-se muitas pessoas genuinamente boas que querem ajudar e fazer com que não estejas tão sozinha. Fui convidada para almoçar ou para conhecer a cidade por grupos de pessoas que me conheceram no dia anterior, fui todos os dias saudada pelos empregados do hotel que insistiam em mostrar-me que se lembravam do meu nome. Tudo isso tornou a minha estadia em Montañita muito mais agradável. Este lugar já não era a pequena vila de pescadores de Puerto Lopez. Era uma vila repleta de estrangeiros, cheia de bares e vida nocturna, com um areal enorme onde por vezes não se distinguiam as pranchas da areia. E uma vila como estas, para mim, seria aborrecida se só estivesse eu. As pessoas fizeram com que não fosse aborrecido de todo. As pessoas, e o alerta vermelho de tsunami depois do sismo no Chile. De repente, toda a gente começou a fazer as malas, viam-se carros que saíam em direcção à montanha e a população de Montañita passou para metade. Eu continuei tranquila, talvez demasiado confiante de que se o alerta fosse sério haveria mais avisos do que um alerta via televisão e rádio. A verdade é que duas horas depois, já o aviso tinha sido retirado. A atmosfera nessa noite era tal e qual a que sucede uma hecatombe. Tudo muito tranquilo e silencioso, o ar húmido, as lojas fechadas. O que até foi agradável na sempre tão movimentada Montañita. Houve até um grupo de peruanos que já lá vivia há algum tipo e que exclamou: “Que bem que se está em Montañita depois de um alerta tsunami!”.
A paragem seguinte foi Vilcabamba, no extremo sul do Equador. Vilcabamba… Abandonei a cidade pensando que, se pudesse, lá passaria uma vida. Rodeada por colinas e colinas verde-pimento tão forte como se pintado, esta vila é conhecida como o vale da longevidade, onde as pessoas atingem idades muito avançadas. Para além dos habitantes locais, a vila está repleta de viajantes que fazem artesanato, cantam na rua ou vendem comida para continuar a viajar. Percorre-se a pé, com as suas pequenas casas encantadoras, os seus restaurantes vegetarianos, os cavalos e o café que torra. Como toda a gente que pára neste lugar, não podia sair daqui sem andar a cavalo. Que saudades de andar a cavalo! E subir colinas montada, no meio da floresta, parando para ver cascatas, com teias de aranha gigantes a cada dois metros de caminho, em caminhos estreitos rodeada por árvores e cactos e ruídos de água e animais não podia saber melhor. Mas a verdadeira magia de Vilcabamba está nas pessoas. Logo na primeira noite, conheci um grupo de dois argentinos, uma argentina e um americano que me convidaram para provar as empanadas deliciosas que estavam a preparar para vender no dia seguinte e passar um serão com eles a tocar guitarra e a conversar. Nos dias seguintes, encontrei toda a gente tão aberta, relaxada e tolerante que queria que todo o mundo tivesse um bocadinho dos viajantes de Vilcabamba. Aqui, não havia problema se estivesse descalça na rua, não era um atentado social se a minha saia estivesse suja e tudo o que quisesse ser seria aceite com naturalidade. Com naturalidade e um sorriso tranquilo. E música, na maior parte das vezes. Tenho sentido isso por toda a América do Sul, mas, não sei porquê, Vilcabamba teve uma magia diferente. Talvez o tal rio da longevidade?
Para terminar as primeiras duas semanas de viagem, fui ao vulcão Cotopaxi. Menina inconsciente, não me passou pela cabeça que 4800 metros de altitude num vulcão com neve seriam frios. Fui então contente com a minha camisola do dia a dia. Toda a gente muito equipada com roupa de neve observava-me com olhares algo chocados. A principal subida é feita de carro e, aí, o frio não é sentido. Novamente, viajando sozinha, não foi difícil arranjar boleia e evitar pagar os preços absurdos que pedem os táxis. Subindo de carro, pradarias verde musgo só povoadas de plantas rasteiras em que cavalos selvagens pastavam sucediam-se, rodeadas de montanhas castanhas. Lagos. À medida que subíamos, por uma estrada serpenteante castanho escura, da mesma cor das montanhas onde a vegetação era cada vez mais escassa, aproximavamo-nos do vulcão, que começa verde em baixo e passa a castanho cor de barro e branco da neve mais em cima. Sair do carro, levar com o vento frio na cara, e fazer uma caminhada de uma hora até ao refúgio da montanha e olhar para baixo e ver toda a paisagem que tinha passado de cima, agora com as nuvens e desde o vulcão. Foi fantástico.
Digo agora adeus ao Equador. Vou ter saudades. Há poucos países com tanta diversidade acessível a tão pequenas distâncias. Depois de uma camioneta nocturna, tanto podemos estar em cidades coloniais, montanhas com neve, praias paradisíacas ou selva amazónica. Vou ter saudades de todo o comércio e comidas de rua, dos pregões que gritam muito alto em espanhol, dos autocarros em que está sempre presente um filme americano dobrado em espanhol muito violento e muito alto, das paisagens maravilhosas ainda quase inexploradas pelos turistas. E da minha casa, em Quito. Do meu terraço onde víamos o pôr-do-sol nas montanhas com uma cerveja Pilsener a acompanhar, da nossa cozinha comum, em que todos provávamos a comida de todos e em que o dia de festa era quando esta estava limpa, de todas as pessoas que conheci e que tornaram toda a minha estadia muito melhor. Agora, seguem-se mais aventuras por outros países. Até breve!