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Crónica

EPIFANIA

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foto-minDesde o século das luzes que o universo cristalino da razão insiste em ignorar a loucura dos humanos ou a admitir que é próprio da irracionalidade que habita esses animais resistir às transparências da razão. Em vez disso, é preferível pensar que logo, logo se acenderão as luminárias e tudo encarrilará na linha recta da razoabilidade e do progresso, evitando as trevas e as crenças obscuras a golpes de conhecimento e virtudes do cidadão esclarecido empenhado no bem comum e no progresso da civilização. Escreveu Alain Tourraine que “o universo das Luzes é transparente mas, como um cristal, fechado sobre si próprio. Os modernistas viviam numa bolha, protegidos de tudo o que pudesse perturbar a razão e a ordem natural das coisas”.[1]

Ao contrário da natureza que é louca, nunca a sociedade racionalizada conseguiu vingar. A espontaneidade da razão pura não bate certo com as diferentes razões do poder e dos conflitos que permanentemente se engendram. Os valores nobres da solidariedade e da integração não resistem a uma sociedade que afinal é muito pouco normalizada e progressista e, sobretudo, muito dada às acrobacias da dominação e da distinção. Por isso, depois do apocalipse da Segunda Guerra Mundial nunca mais o moderno recuperou os restos da aura que ainda tinha. A força destruidora das máquinas e das tecnologias guerreiras e as razões de quem as punha a maquinar, deixaram um sabor amargo sobre as mitologias do progresso, muitas cicatrizes profundas, morticínios e bastante terra queimada. Muita da moral e da ideologia que antes prometiam a emancipação e a justiça, ficaram razoavelmente esturricadas e com crosta rija e assim se foi rompendo a confiança nos tecnocratas, nos governantes e nas certezas em dominar a realidade e o futuro.

Sobre esses desencantamentos cresce o triunfo libertário do liberalismo, uma ilusão para voltar a ordenar o mundo onde a incerteza e o caos vão em regime torrencial ameaçando afogar o pouco entendimento que já havia. Que se salve cada um por si, então, e quem não conseguir empreender a salvação, que a compre, pois não faltará quem lha venda a crédito, em saldo e às prestações ou, quem sabe, numa raspadinha. Que não desfaleçam os mercados perante tantas coisas descosidas, as marés vivas dessincronizadas arremessadas contra os pedregulhos e, geladas, as estrelas cadentes em rota de colisão.

Mesmo assim, quando se pensava que estava tudo perdido num chão duro sob ruínas em perspectiva, irrompeu a natureza vermelha de raiva. Longe das florestas impenetráveis, das profundezas abissais, das lojas de plantas e dos pacotes onde brilha a alface lavada embalada em vácuo, a erva gigante soltou ramagens em redor distribuindo frutos tóxicos à voracidade dos pássaros. É a phytolacca americana a crescer fora do berço que a viu nascer no outro lado do Atlântico mas que agora prospera em muitas esquinas do jardim universal, sobretudo nos ambientes fortemente perturbados pela acção antrópica – na linguagem própria das ciências dos ecossistemas, assim chamam a lugares como este edifício industrial abandonado, vazio e abundantemente arejado e iluminado através das costelas que sustinham as coberturas.

O vigor da phytolacca enquanto expressão da ordem natural e universal, da harmonia, da origem e dos fundamentos de uma verdade que dispensa explicações transcendentais, irrompe do chão perturbado e cimentado como uma nova e espontânea revelação. Saravá!

[1] Alain Touraine (1992),  Critique de la modernité, Librairie Arthème Fayard, Paris, p.45.

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