Crónica
GEOMETRIA DA ÁGUA
Não consta que Arquimedes tivesse andado aqui a traçar formas e medidas para encher o espaço vazio entre sólidas pedras artificiosamente dispostas. A geometria era outra. Era encontrar uma maneira de organizar a água para organizar a vida em comum: partilhar, distribuir, regular, proporcionar, manter e limpar os caminhos da água, repartir funções ou regular conflitos, encontrar o justo afastamento para que o comum pudesse acontecer.
Nada na água destes tanques desperta a melancolia das águas paradas. São águas cristalinas, lustrais, capazes de constantemente fecundar e recriar a terra, o mundo. Nada de mistérios do horizonte longínquo e dos abismos do mar; nada da agitação das correntes ou das cascatas, da violência das enxurradas, da podridão dos pântanos.
Da fonte que jorra continuamente esta frescura, circula a água para os quatro primeiros andamentos: matar a sede aos humanos; lavar roupa, dar de beber aos animais e, finalmente, manter cheio o reservatório maior de onde se encaminham as levadas para os campos e para as hortas. Depois regressará a água à terra novamente.
Não sabemos hoje como compor outro relato hidráulico para um novo ciclo. Aquilo que a água fertilizava mal chegava para o mínimo de uma vida decente. Foi assim durante séculos. Agora crescem os limos no tanque, o musgo sobre as pedras e vai-se a água descendo, sumindo-se poucos metros à frente depois de enlamear e fazer crescer a erva por onde passa. Desligou-se da rede quando a tendência nos tempos que correm é, precisamente, a água circular na rede como quase tudo, a sociedade, a economia, as empresas, a informação, a ladroagem, a internet, o mundo e as caixas multibanco, de entre uma infinita lista.
Nesse mundo, off the grid é uma expressão universal aplicada a tudo que anda solto, desenredado para lá do sistema que enquadra a sua própria existência. Seriam águas livres. Nome bonito para se andar por fora dos aquedutos sem fazer poças de água choca de onde as ninfas se apartam e os mosquitos se embriagam.