Crónica

MIRAGAIA TOLDADA

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Durante séculos, Miragaia teve um extenso areal onde se faziam operações de embarque e desembarque de pessoas e mercadorias e se desenvolviam estaleiros de construção naval. Um lugar bom para encostar os navios, como se dizia na gíria marítima. Desde o séc. XV também aí se instalaram os primeiros grandes armazéns de vinho.

A construção da Alfândega Nova (c.1860), com um acesso em túnel ligando à rede de caminho-de-ferro, constituiu uma das maiores obras de artificialização das margens do Douro. Tornava-se assim possível conectar transporte ferroviário e aquático, facilitando a circulação de mercadorias. Com o aterro, a rua elevada e o gigantesco edifício, os arcos de Miragaia foram remetidos a um estatuto de fosso de orquestra tornando até problemático o topónimo de Miragaia.

Entretanto, os navios foram crescendo de tamanho, a barra tornou-se cada vez mais problemática e, finalmente, a invenção da caixa mágica do contentor, tornaram o velho porto do Porto completamente inoperacional. Era a vez de Leixões e toda a marginal do rio – do lado de Gaia resistem as caves do vinho do Porto -, se foi então desfuncionalizando, liberta de armazéns, transitários, entrepostos e outras actividades da logística de mercadorias. A faina fluvial ficou registada no filme de Manoel de Oliveira e o tempo continuou como sempre feito de mudança e, agora, com muita azáfama turística que antes era escassa no burgo.

Como a tal faina fluvial mudou de ramo, veio a disneylandia abrir sucursais fatelas no Porto, instalando cenografias e carrosséis temáticos sobre o tempo em que navegadores e negreiros se encontraram para globalizar a cristandade, o poder e o negócio pelo mundo. Se isto pega, os prédios do Porto velho vão ficar todos com tapumes assim com pinturas e adereços, cada qual com seu tema, como os carros alegóricos dos desfiles de carnaval. Era lindo e a UNESCO viria classificar o conjunto como património delirante da humanidade – world delirious heritage, em estrangeiro.

Curioso é esta cenografia parecer um episódio narrado pelas velhas crónicas, onde, nos idos de Fevereiro de 1387, se dizia que D. João I tinha chegado a Miragaia a bordo de huû grande e fermoso batel, rricamente coregido e toldado“, e que saíra el Rey em terra por huua larga e espaçosa pramcha[1]. Não me é suficiente o conhecimento filológico para perceber o que é que o rei ou o batel tinham para parecerem rricamente coregidos, mas percebo porque é que o D. João I ficou toldado quando passou por esta larga e espaçosa prancha.

A real criatura poderia ter pensado que o mundo estava de pernas para o ar porque estacionara a nau do lado contrário onde devia e, pasme-se, o mar, espalhado e liquefeito no sítio onde devia estar o rio, assentava num porticado de granito e não em abismos onde habitavam monstros, sereias, chernes e gorazes de pinta.

A coisa podia ter corrido mal, e o senhor mareado podia até ter-se despenhado de cabeça para baixo na calçada de Miragaia. Ficava a Filipa de Lencastre eternamente à espera dele nos escritórios da Ryanair, Melgaço ficaria por reconquistar nas mãos do inimigo e Fernão Lopes teria que reescrever as crónicas já com o acordo ortográfico (também produto muito toldado).

Estaria mesmo o mundo um bocado ensandecido como hoje? Está.

[1] In Barros, Amandio Jorge Morais (2004), Porto – a construção de um espaço marítimo alvores dos tempos modernos, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p.53

Miragaia ricamente toldada

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