Crónica
TECNOLOGIA E O LOBO MAU
Isto não é o campo. O campo é o reino do bucólico: para lá da sachola, só admite tecnologia até ao nível de um arado rasteiro em madeira. O metálico, o ângulo e o enferrujado, entre outros, provocam sérios danos na essência pastoral do campo. A gravilha, os aterros e outras matérias mobilizadas por forças técnicas não são da poética das avalanches e dos rios de lama; são intrusos; elementos distintos da matéria campestre habitada pelas forças da natureza. A natureza e o campo confundem-se porque o animal camponês que domestica a natureza está ainda num estado muito mamífero algures entre o embestado e o sopro divino que o criou.
A cultura, os verdadeiramente cultos, eruditos nas coisas elevadas das letras, da música, dos jogos de salão e das artes em geral, desprezam os artifícios tecnológicos. As coisas puras do espírito dispensam mecanismos, massas sintéticas, próteses mecânicas e engrenagens que só contêm impurezas, suor e trabalho. Polida, a superfície tecnológica pode assemelhar-se a uma jóia. Assemelhar-se e não ser ou simplesmente parecer é totalmente contrário às realidades densas e profundas da cultura.
Os verdadeiramente aristocratas desprezam a técnica. A técnica é excelente para os burgueses e os novos-ricos. Nós os aristocratas admiramos antiguidades, técnicas suaves e um pouco disfuncionais ou mesmo obsoletas para que delas se desprenda apenas um misto de curiosidade e um vago testemunho algures no repositório dos objectos que fixam a linhagem e a pureza do sangue que se transmitiu através de a quem aquele objecto pertenceu e assim evoca a sua presença. Nem se sabe o que é. Nem interessa a serventia. Utilitarismo é para a plebe.
Porque somos artistas ainda verdadeiros, guardamos o mistério inconfessável da aura das coisas únicas. A técnica é um ofício de simplificação e repetição. De tanto repetir fundiu-se a centelha criativa que a gerou. Toda a tecnologia é banal, incluindo a avançada cuja sorte é ser ultrapassada pela vertigem da inovação permanente que sustem a técnica. A espectacularidade da técnica só seduz os tontos. Concedemos, no entanto, um certo fascínio passageiro por técnicas extremamente simples e discretas ou fogo-de-artifício nas noites do jardim em festa.
Heidegger, o filósofo sofisticado, diz que a génese do objecto técnico é um processo de pensamento que desagua em artefactos tangíveis que misturam matéria, forma, finalidade de uso e modo de realização. Os gregos antigos já disto falavam. Quando a técnica se torna ubíqua, inseparável de todos os gestos e pensamentos dos humanos, devoradora de si própria para se ultra-aperfeiçoar e ultrapassar, pode desprender-se do controlo dos humanos, desconfinar-se em complicados sistemas e funções cujo todo não se conhece. Tantos são os labirintos que a vítima é facilmente caçada em qualquer trajecto de fuga ou negação tecnicista. Uma assombração.
A propalada eficácia do tecnocrata e do pensamento prático esmagam o tribuno e a sua retórica literária. O tecnocrata pensa que a retórica é apenas a arte de criar confusão em torno daquilo que o conhecimento científico e técnico desconfundiu há muito tempo. A retórica do tecnocrata é simples: isolar rigorosamente o domínio da racionalidade científico-técnica (cristalina), do domínio da política (sujo e opaco). Em seguida, cientifica-se a política e embrulha-se tudo no mesmo pacote (técnico). Rega-se então com uma dose abundante de burocracia aprisionada num sistema informático e abrem-se as portas do inferno.
A burocracia possui uma razão autónoma, pode afinar-se até ao infinito com base na ideia de que a complexidade é apenas o somatório de coisas simples relacionadas por mecanismos causais claros que, por sua vez…
Estou Farta! Farta! protesta a cachopa. Essa lenga-lenga nunca mais tem fim. Eu apenas perguntei por este azul que não estava aqui na floresta.
Agora tenho que ir a casa da avozinha que se está a fazer noite.
O lobo, vendo aquela deliciosa criatura ficar ainda mais bela com este acesso de impaciência nervosa, comeu-a.