Crónica

AS MASSAS ISTO, AS MASSAS AQUILO

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Ai que as massas são tão subservientes. Ai que as pessoas andam tão cegas/surdas/mudas/perdidas/inconscientes.

São muitos os dedos apontados às massas. Muitas vezes, de que se aportam de intenções agrupadas e que, a partir delas, se cingem às diretrizes dos seus inspiradores e líderes. O problema é das massas, o problema que tanto esquematizam e discriminam como se nada tivesse a ver com os próprios críticos. Até porque os críticos fazem parte dessas mesmas massas. Ou não?

A sociedade é composta por todos, segregando-se em diversas comunidades. Estamos inextricavelmente ligados a grupos de gente, a pessoas, a agrupamentos que, por sua vez, acabam por constituir as próprias massas. Por muito que a esparguete dê uma de italiana, as massas são universais. Começam nos tempos mais remotos, nos quais os aldeões se reuníam para discutir as incidências do seu pequeno reduto. Desde então, as massas foram crescendo, tanto em número como em membros. As massas, redundantemente, massificaram-se. Tornaram-se volumosas, crescentes, e com cada vez mais importância social. Pelo menos, no que toca à retórica daqueles que assumiam a palavra. O discurso, o logos, sempre se foi formulando para que as massas o escutassem, e o incorporassem com um valor de verdade indiscutível.

Desde então, saltaram os dissidentes. Não queriam fazer parte das massas. Entre muitas designações, às quais se incluem a de “renegados”, e a de “marginais”, foram-se germinando grupos. Novos núcleos de atividade social criaram-se, e entraram, em grande parte das ocasiões, em conflito com as inicialmente existentes. No fundo, dois ou mais canais que as massas, especadas, interiorizavam e digeriam. Massas de massas, massificadas por mais massas. Quase que dá fome.

A questão é: enquanto muitos apontam os dedos a outrem, acabam por se apontar a si mesmos. Mesmo que tentem ilibar-se da generalização, estão presas a esta. É praticamente impossível um alguém estar dissociado de uma massa, seja ela num concerto, num evento, numa palestra, ou numa aula. Todos os grupos que se reúnem em torno de algo, ou que são parte de comunidades e da própria sociedade, não estão isentos das culpas que tentam imputar ao todo. Este mesmo todo não descarta a participação de qualquer e ilustre iluminado. No fundo, também ele é culpado daquilo que o tribunal individual acusa. Deve ser por isso que, a uma opinião, ou a uma apreciação, chamam de juízo.

Um “eles” poderia ser substituído por um “nós”. Porque o “nós”, como elemento constituinte de uma organização de gente, representa aquilo que é o sujeito ativo, participativo, e principal da mesma. Enquanto a culpa é apontada aos tais “eles”, o “nós” acaba implicado nessa culpabilização. Os que apontam o dedo não o têm suficientemente curvo para apontar a todos. É assim que, numa exclusão de partes, é mais fácil ficar-se pelos outros.

O trabalho de casa permanece por ser feito. Por mais massas que existam, e por mais contestatárias que sejam, esquecem sempre o essencial do espírito e da consciência críticos: o tal “nós”. E “nós”? Não temos defeitos? Somos idílicos? Somos mesmo uma inexplicável vítima de opressão? Seremos os bons samaritanos, com um cadastro que, de tão limpo, quase que é transparente? É tão fácil escolher um terceiro sobre quem, em bom brasileiro, “xingar”. O terceiro está distante e, por isso, um tanto ou quanto longe do nosso âmbito de influências diretas. Muitos do que povoam as ruas, procurando apontar os dedos, esquecem-se de os voltar para dentro, e de, com eles, meditar sobre a sua realidade.

Por mais irresponsável que seja o contexto em que se vive, e o ambiente em que as preocupações se situam, será que as massas valorizam as (im)perfeições das identidades de cada um dos seus componentes? Talvez não. Talvez haja uma margem interessante de cada um de “nós” se valorizar, enquanto se percebe, se posiciona, e se lança com vista à opinião fundamentada, pensada, e personalizada. As massas são amplas, mas não é por isso que descuram os contributos singulares de cada um. Quiçá seja tempo para um espaço mais bem ocupado, mais bem pensado, mais bem consolado.

PS.: Saliente-se que eu, como membro dessas massas, aponto este texto a mim, e a todos aqueles que, como eu, apontam um sem fim de críticas ao outro, por mais que não me esqueça de quem sou, e de quem posso ser.

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