Crónica

ANTROPOCENO

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A seguir ao tempo do livro do Genesis, é o tempo geológico aquele que mais espaçado anda. Pelo menos, assim nos habituaram: era preciso uma dose valente de milhões de anos para passar de uma era para outra e, de repente, mostravam-nos uma descontinuidade estratigráfica e era outra… era. Em todo o caso, a geologia ou a climatologia e outros saberes mobilizados para a esta empresa, eram ciências naturais. Os humanos não tinham cabimento.

Agora discute-se se o Antropoceno terá começado na revolução industrial quando certos humanos começaram a queimar carvão aos milhões de toneladas para alimentar os fornos das maquinarias a vapor. A história, as ciências sociais, encontraram-se finalmente com as naturais. Foi também uma altura em que na Inglaterra o capitalismoceno andou acelerado, drenando mercadorias dinheiro e trabalho de um lado ao outro do planeta e acumulando tudo em poucos lugares e em pouca gente.

Acabou o romance que os modernos tinham inventado: de tanto separarem a natureza do homem em sentidos opostos, os dois acabaram por se encontrar num quarto dos fundos a braços com acusações mútuas e histórias de violência – os humanos que tinham por destino dominar a natureza desse lá por onde desse, até com ela fabricarem outras naturezas nunca vistas; a natureza, aquecida e falha de ozono e outras substâncias, que de tanto maltratada se iria vingar trocando as voltas ao clima, acirrando tempestades, derretendo gelo e avançando com os mares pela terra adentro.

Para apaziguar a contenda, veio o tempo breve das conversas piedosas do tudo sustentável, descarbonizado, o ambiente limpinho e a biodiversidade alimentada só com coisas boas. Os humanos iam finalmente governar o planeta todo, constituindo-se como assembleia plenária globalmente plena de boas intenções e gestos altruístas. O Capitalismoceno ia acabar e haveria outras coisas diferentes do preço para medir o valor das coisas. Na clareira da floresta, a grande tribo dos humanos ia eleger um chefe e a Terra seria finalmente uma nave espacial com comandante, uma tripulação disciplinada e nobres missões a desempenhar. Parecia o filme da Arca de Noé em versão tecnofuturista.

Eis senão quando vem um loiro esquisito para presidente dos EUA e lá se foi outra patada no romance. Por ora.

Bruno Latour pergunta quem é o antrophos do Antropoceno[1]. Tem lógica a pergunta, porque não se conhece qualquer capacidade de acção conjunta da humanidade ou da espécie humana como um todo com expressão política credível e acção concertada: um colectivo. Continua Latour invocando Sloterdijk, o filósofo, perguntando o que é que se vê e donde quando se adjectiva algo de global:

Onde moravas, quando dizias que tinhas uma “visão global” do universo? Como é que estás protegido da aniquilação? O que vês? Que ar respiras? Como é que te aqueces, como te vestes, como te alimentas? E se é verdade que não consegues atender a essas necessidades fundamentais da vida, como é que podes estar continuamente a falar sobre tudo o que é verdadeiro e belo ocupando não se sabe quão elevada plataforma moral? Sem especificar a respectiva climatologia, os valores que pretendes defender provavelmente já devem estar mortos como plantas fechadas no interior de uma estufa demasiado exposta ao sol.

É outra vez a Terra Incógnita, os bons selvagens e os canibais agora cheios de máquinas e artelhos tecnológicos do tempo em que os animais e os humanos não se distinguiam, todos falantes muito multiculturais e multinaturais.

 

[1] Bruno Latour (2014), “L’Anthropocène et la destruction de l’image du Globe”, In Emilie Hache (sous la direction de) in De l’univers clos au monde infini, éditions Dehors, Paris, pp.27-54.

 

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