Crónica
HORTA
Biológica, vertical, urbana, orgânica, solidária, social, pedagógica, sustentável (não podia faltar), comunitária, sensorial…, são adjectivos do género feminino. Com frequência aparecem associados à horta, palavra que entretanto entrou num processo de expansão de sentido directamente proporcional à sua intensa magificação. A horta dá de comer, torna a alimentação mais saudável, atrapalha o agronegócio, combate a quimioterapia agrícola, o gasto de energia em transportar alimentos, favorece a sociabilidade e a troca generosa, faz-nos meter as mãos na terra e sentir o cosmos. Tudo verdade.
Não caberiam num silo do tamanho daqueles que o Estado Novo espalhou pelo Alentejo fora, as narrativas em que a horta entra enquanto dispositivo sócio-político-místico para dar sentido ao mundo. Compreende-se. O mundo está de facto a transformar-se um ensarilhado de assuntos relativamente caóticos que nos provocam um atordoamento constante, uma sensação de que façamos o que façamos, nada mudará no desconfinamento imenso a que se chama globalização. No global cabem coisas como a hegemonia, a indeterminação, a fragmentação, a desordem, a assimetria, a instabilidade, a turbulência, a volatilidade, a desigualdade, etc., O global não é como uma nave espacial com o seu comandante, uma missão, os sistemas de decisão ou a hierarquia de comando. Enfim, o global não é um “todo” ou o resultado do concerto das nações ou da acção de uma estrutura minimamente regulável, chamemos-lhe capitalismo ou outra coisa. Essas coisas são ferramentas de pensamento e não factos abarcáveis. Quando se lhes toca, mudam-se, transformam-se, deslocalizam-se, variam ligeiramente o andamento cacofónico do planeta. Não há como pensar global e agir local porque o local e o global não são equivalentes a batatas num saco de batatas – as partes e o todo pensáveis enquanto coisas equivalentes, simétricas, homogéneas.
Perdida essa capacidade de acção conjunta organizada de forma durável e consequente no jogo da política (não confundir com o mundo dissipativo das redes sociais, dos movimentos de cidadãos, das tribos que se fecham nos seus mundos, das comunidades inventadas e outras formas de acção colectiva); perdida a eficácia do Estado-Nação enquanto entidade soberana dentro do seu território/sociedade, a mitologia do (des)concerto das nações, a instabilidade das hegemonias para o bem e para o mal: as coisas que nos costumavam proteger (a distância, a Intervenção do Estado, a previsão do futuro, os procedimentos defensivos clássicos) foram-se enfraquecendo por razões várias e já não nos asseguram protecção suficiente[1].
Restam-nos as nossas convicções. Há quem pense que muda o mundo numa horta porque a horta é boa e porque mais tarde ou mais cedo todos descobrirão que é boa e todos se tornarão bons hortelãos. É reconfortante mas é mentira.
[1] Daniel Innerarity (2013), A Concept of the Global to Conceive Global Governance, p.6 in https://www.danielinnerarity.es/art%C3%ADculos/