Crónica
OS VENTOS ESQUECIDOS DO VERÃO
O verão está aí. Consigo, as vagas de calor habituais, a pedirem um refresco da cabeça aos pés, na praia mais perto de si. Muita gente suspira pela sua chegada. Simboliza, mais do que o aconchego natural, um momento de pausa. Verão é sinónimo de férias, é sinónimo de descontração fora das burocracias rotinadas pelo trabalho e pelo dia-a-dia, que chateia mais do que alegra.
Por aqui se vê a intensidade com a qual se usufrui do momento de pausa, que, para alguns, não vai para além de uns dias. Cada vez mais é desigual a proporção entre o tempo para um lazer nutritivo e devidamente complementar, pois o trabalho cresce desmedidamente, sem olhar para o potencial que cada um tem para experimentar o diferente. Pois bem, o verão, mais do que surgir como uma belíssima oportunidade para que isso se constate, vai mais longe. Germina essas paixões no seio de cada um, que vai olhando para as lides do costume com alguma indagação. Afinal de contas, somos só trabalho?
No entanto, e passado o mês de setembro, todas as contas se esquecem. Em outubro, tudo aplana e, mesmo com a chegada de uns ventos que levantam bem alto, com um frio que puxa pela saudade do verão, não mais se leva em conta séria toda a projeção feita naquele momento de pausa, onde a autodescoberta foi empreendida com um êxito incrível. O frio chegou para gelar e congelar todo o plano de transcendência de algo que se tornou mais um hábito do que um prazer, mais um meio de segurança e de sustento do que algo que rejuvenesce a cada dia que passa.
Com isto, e no decorrer dos meses, chega outro verão. As mesmas ou outras vocações, esquecidas ou não descortinadas outrora, voltam a ser alimentadas e postas em práticas, porque os talentos não se perdem assim, com um estalar de dedos, por muito que pareça que nos fogem cada dia que passa. As memórias sazonais voltam a vir à tona, cruzando-se com o presente que acabou de chegar. São jornadas de um rejúbilo intenso e imenso, mas que partem para outra mal a chamada para o escritório volte a tilintar.
São planos e indecisos, é certo, mas os ventos do verão vão-se esquecendo. O tempo para usufruir de tudo, sem necessitar de corresponder a responsabilidades, partiu faz pouco, e a sua equivalência vem tarde. Pelo meio, ficam estes fogachos de um prazer refinado e devidamente condimentado, apetecível mas olvidável aos olhos e à mente dos que, por mais que sintam, se dissipam dessas oportunidades venturosas. Cada vez somos mais sobrevivência do que vivência, mas somos culpados e vítimas deste emaranhado em que nos fomos metendo.
Mais do que pensar em tudo isto, é tempo de espairecer, de usufruir, de compensar os dias mais ou menos tensos que o calendário nos apresentou, e dar largas para a renovação e multiplicação dos nossos talentos e das nossas valências. Angariar ideias para as pôr em prática num setembro sempre em transição, mas em rebuliço pelo novo que costuma chegar. Se pouco pode mudar por fora, que muito mude por dentro. Mais do que o recarregar, dá-se azo para descarregar e descolar com a bagagem dos sonhos, mais ou menos tangíveis, mas sempre como a referência do que é feito diariamente.
Enquanto crianças, o verão era uma coisa maior. Um período de grande êxtase, de grande celebração, em que as fundações da Natureza nos acolhiam com a sua hospitalidade do costume, com uma retumbância indescritível. Ainda hoje assim o é, mas, dantes, saboreava-se com mais energia e impacto. Surgia como um palco de grande liberdade para representar a essência de cada um, coisa que nunca se tornava escondida nos dias antecessores. O sonho? Esse alimentava-se diariamente, cada vez mais, ao visualizar os pequenos e ínfimos detalhes que constituíam os contextos avistados e deslumbrados. Queria-se, mais do que ser verão ou inverno, ser-se feliz, mas entregar o nosso corpo ao calor e ao vento humedecido permanecia como um prazer eterno, mais do que as fotografias e as sinfonias para andar em modas curvilíneas e instáveis.
Apesar de tudo, o tempo de criança partiu. O mote, no entanto, está lá, e estará, para sempre, lançado nos nossos corações. Ecoa essa esperança de que, mais do que uma vida satisfatória, se viva uma feliz. Iluminando um daqueles valores apregoados pela geração dos chats e redes, só se vive uma vez. Por muito que se acredite na reencarnação, só esta é tangível. O verão não deixa de ser incrível, apelando e proclamando um convite para a intimidade com a Natureza dos animais e dos homens. Porém, é passageiro, e os dias que muitos classificam de frustrantes estão à porta. Que não deixem no álbum os ventos do verão, para aquele especial serão de muitos anos depois. O presente está aqui. O que fazer com ele? Viver, sem desprender a bondade e a vontade de se sonhar, com pés e cabeça, para além do constante engonhar.
(Os ventos esquecidos do verão
Para onde decidiram partir?
Para longe de mim,
Para longe da aspiração
Que pintei em miúdo.
Hoje, em graúdo,
Sou espécie de sombra
Que se quer colorir,
Que se quer usufruir
Na lamparina iluminada
Com a luz do meu sonho)