Crónica
NA AMÉRICA LATINA #10
A entrada no Paraguai não começou bem. A bem dizer, também não começou mal. Começou péssima. Estava em Santa Cruz e ia apanhar uma camioneta até Assunción. Quando saímos da Bolívia, olhei para a camioneta um pouco desconfiada: “Então é isto que nos vai levar durante 22 horas?” Continuei sem pensar muito no assunto, que na América do Sul, por mais que o veículo pareça destruído, acaba sempre por chegar ao local, atravessando as piores estradas possíveis.
Começou a viagem: tudo muito tranquilo, as pessoas estavam animadas, tivemos frango frio para jantar. A meio da primeira noite, reparei que a camioneta estava parada: achei estranho, mas virei-me para o outro lado no assento, que mal inclinava, e voltei a dormir. Amanheceu, e percebi que algo se passava com a camioneta: pelos vistos, o alternador não funcionava.
Saímos todos do autocarro, estava um belo dia de sol, fomos buscar cervejas, havia a final da Champions que ia começar. Em frente ao motor empoeirado da camioneta, cinco ou seis homens olhavam especados, não fazendo a menor ideia do que fazer. O mecânico lá chegou, em escassas 7 horas resolveu o problema e, bem, lá fomos nós outra vez. Começava a formar-se uma boa camaradagem entre as pessoas que partilhavam tantas horas no mesmo espaço.
Escassos 10 minutos depois da última paragem, uma mota “atravessou-se em frente ao autocarro”. Aqui, a paragem foi curta, não havendo feridos ou grandes danos. Mas meia hora não iria passar, até que o alternador desse novamente sinais de vida (ou morte). Desta vez, problema resolvido em apenas duas horas. “Desta é de vez”, pensávamos todos.
La passámos a fronteira boliviana. Quando parámos, a meio da segunda noite, eu queria acreditar que tudo não passava de um pesadelo. Nenhum dos motoristas comunicava com os passageiros. O sol nasceu, e, mal saímos da camioneta, vimos que metade estava dentro da estrada e metade fora. A estrada era lamacenta e acidentada. Não podíamos sair antes que a terra secasse. Ah, e o alternador já não funcionava outra vez!
Lá esperámos. Quantas horas, não sei, perdi-lhes a conta. Sei que, da manhã passámos à tarde e que não havia água ou comida. Empurrámos a camioneta e finalmente saímos. Ainda pararíamos uma hora para uma revisão exaustiva de todas as malas por parte da polícia paraguaia. Na minha mochila mal tocaram. Abriram-na, e o saco da roupa suja estava em cima: “Roupa suja?”, perguntaram. “Bem, na verdade nenhuma roupa que está aí está verdadeiramente limpa…”, respondi. Já não quiseram ver o resto da mochila.
Lá cheguei a Assunción. Não às 19h de sábado, mas às 4h de segunda-feira. Apesar de tudo, sobrevivi.
Assunción aparece como caída do céu, no imenso verde que é o Paraguai. Fora da capital, o Paraguai tem bastante mais vegetação que gente. Aliás, aparenta ter uma densidade populacional bastante reduzida. Mas a gente que tem é a melhor que encontrei até agora. Bastou-me sair do terminal. Várias mulheres de cestas à cabeça gritavam: “Chipa, chipa!“. A chipa é um pão de farinha de mandioca e queijo delicioso, e é comida em todos os momentos pelos paraguaios. Eu queria provar, mas ainda não tinha dinheiro trocado e a senhora não tinha troco. Dois segundos depois, alguém me oferecia uma. Não tardou muito também até que alguém partilhasse comigo o chá mate, um chá bebido em copos característicos com uma boquilha, que é partilhado por todos, num momento muito simpático que chocaria a ASAE.
Ao passear pela Assunción colonial, com a avenida Costanera a acompanhar o rio e a trazer-me à memória o rio Douro, convidaram-me para almoçar, levaram-me a conhecer o cerro Lambaré, de onde se vê toda a cidade, deram-me boleias. Ainda não acredito na generosidade paraguaia.
De Assunción, segui para Encarnación, a pérola do sul, uma cidade bucólica, junto ao rio Paraná. As missões jesuíticas de Trindad e Jesus, que estão a poucos quilómetros da cidade, são fantásticas. Ruínas de pedra cor-de-barro cobertas de musgo, surgem numa manhã de nevoeiro no meio da selva. Enormes, húmidas, cheias de fantasmas, surgem das profundezas como um tesouro perdido. Claro que fui e voltei à boleia, com os polícias (sim, os polícias) a pararem os carros na estrada para lhes pedirem boleia para mim.
Antes de sair do Paraguai, ainda fui a Villarrica, onde está o ponto mais alto do país. Depois de ter estado a mais de 6000 metros de altitude, os (quase) 900 deste cume tiveram a sua piada. A infra-estrutura para lá chegar não existe, como, aliás, quase nada está desenvolvido no turismo do país. Tive de lá chegar pedindo delicadamente a cada mota que passava para me levar uns metros mais adiante. Acabei por chegar às costas de uma menina de 14 anos de totó cor-de-rosa e por voltar num trator cheio de troncos de árvore com dois anciãos. Escolhi um mau dia para ir: chovia e havia muito vento. A caminhada teve piada, tinha de me equilibrar em troncos de árvores para atravessar riachos e havia várias partes bem escorregadias. Lá cheguei: toda a província se via, verde, verde, verde, como não podia deixar de ser no Paraguai. Estava tanto vento, que poucos minutos me pude aguentar lá em cima.
A próxima paragem foi a Ciudad del Este, para cruzar a fronteira com a Argentina e ir às cataratas do Iguaçú. Sobre estas é muito difícil colocar em palavras o que senti. Foi a primeira vez que vi a natureza no seu expoente máximo de força, batendo e pontapeando furiosa o rio e as pedras onde caía. A água não para. Está 24 horas por dia a correr e a soltar a sua raiva. Não se cansa, 365 dias por ano, há centenas de anos. Fiquei hipnotizada a olhar de cima da Garganta del Diablo, a maior das dezenas de quedas de água. Ali, no meio da selva, num verde estonteante, está a Natureza a obrigar que nos rendamos. Sim, há forças maiores que todos os homens juntos. E estavam lá, ao alcance dos meus olhos e da minha imaginação. Não queria ir embora, não queria deixar de as ver. Queria atirar-me, senti-la em mais que uns salpicos de água. As cataratas vêem-se, ouvem-se, molham-nos, mas, sobretudo, tocam-nos. A água arrasta tudo, cai no rio numa nuvem de espuma, como 100 mil martelos violentos, como elefantes pesados, como bombas atómicas. Sinceramente, sinto que há algo em mim que nunca vai ser o mesmo depois de ter ido a Iguaçú. Há algo maior.