Crónica
Doença de rico
No chão só se viam destroços, mas a volta tudo estava intacto. Só os forasteiros e turistas perguntavam, na sua inocência, de onde vinham. A gente da terra ria. Então, não era óbvio? Eram os destroços das almas que a terra não aceitava. Essa gente que por aí andava sem teto nem chão. Todos os dias um novo sítio mas a mesma cruz sobre os seus ombros, a mesma dor e as mesmas feridas que nunca saram.
Alguns já eram conhecidos, mas nem por isso menos olhados de lado. Talvez até fossem mais, porque a novidade já não impelia as gentes a olhá-los nos olhos. Desviavam-se pelo cheiro, talvez. Ou pelo medo de pobreza que as assaltava. Lá na terra era assim, ou eras doente de rico ou doente de pobre. Tudo era doença. Mas decidiu-se, há muito tempo, que a doença de rico era respeitada e a doença de pobre maltratada. E nunca ninguém mudou as regras. Talvez porque quem queria não podia e é difícil trabalhar com destroços.
Senhor Amadeu nasceu com doença de pobre, o que sempre achou injusto. “Nem tive tempo de ser cauteloso para não apanhar. Herdei de meus pais. E a cura nunca nem a vi.”. Pôs senhor à frente do nome para ver se ganhava algum respeito. Senhor Amadeu. Tinha outra música. Dava uma certa importância. Já não era “cabrão”, “imundo” ou “pedaço de merda”, era senhor. Bem, talvez os insultos continuassem, mas esse título era seu. E isso não lho tiravam.
Quando passavam por ele, resmungava para consigo que era bem mais senhor que esses que andavam aí de camisa e relógio. “Maneiras, maneiras, mas nem obrigado sabem dizer”. E depois ria, enquanto descia pela rua com os pés gretados a dançarem contra o chão, gelado e duro: “doença de rico apodrece o coração”.