Crónica
Paulet
Era um travesti que morava na minha rua. Sim. As pessoas usavam o artigo indefinido masculino para se referir a ela. Para mim, era apenas Paulet. Uma mulher alta, magra e diferente das outras mulheres.
Paulet era muito comunicativa. Uma mulher que se diferenciava das outras mulheres do bairro. Paulet sempre aparecia lá em casa. Mamãe ainda trabalhava com costura nessa época. Por vezes, me lembro de Paulet sentada em um banquinho conversando com mamãe enquanto ela fazia os seus serviços de costura. Algumas vezes ficava para o almoço, outras só dava aquela passadinha rápida.
Mamãe por vezes até a presenteava com algumas de suas peças de roupas “fora de uso”. Éramos muito pobres, sabe, mas mamãe ajudava sempre que podia. Era como Deus queria. E Paulet não tinha família no bairro. Paulet era sozinha.
Não pode ser viado. Essa era uma máxima que carreguei durante toda a minha infância vorazmente religiosa. Era isso que tinha na Bíblia. Era o que ela — a narrativa metafórica, o livro sagrado bíblia — dizia. Profetizava, até.
A família da minha mãe é toda católica. E a minha mãe é evangélica. Então já viu, eu cresci em um universo totalmente dogmático, abarrotado de regras e regido por punições ao pecado da carne e outras manifestações de vida fora da igreja. E essas punições eram bem cruéis. Não alcançar a vida eterna era a pior delas. E você sempre deseja ir para o céu quando morrer. Principalmente quando se é criança, né?
Eu aprendi a ler com a Bíblia. Sim. Sempre fui uma criança curiosa, que queria entender das coisas. E a Bíblia é um texto que, teoricamente, prova alguma coisa, né. Se Deus fala aquilo é porque é o certo. Então, tratava-se de um texto histórico que dizia verdades (risos). Pelo menos eu achava isso antes de conhecer a maiêutica da filosofia…
Então, se era o próprio Deus que dava todas aquelas orientações para fazer aquilo, logo, aquilo era o certo a ser feito.
Religião é esse mecanismo político-social de gerir um grupo, né? De se ter uma sociedade no meio da sociedade maior. A igreja tem as suas escaladas sociais. Tem a sua periferia. Tem os trabalhadores. Tem a classe dominante: o pastor; o presbítero; o diácono; o obreiro. A mulher do obreiro. A mulher não sei de quem… Nunca a pastora! (isso na minha época). No máximo, líder do conjunto de senhoras. A religião é esse mecanismo de controle social: ou você segue, ou você é rechaçado.
Até me recordo da última vez em que vi a Paulet. Cabelo raspado, calça jeans e uma blusa frouxa azul gola polo. Estava com o seu exemplar da Bíblia de baixo do braço. Lembro-me de ouvir as pessoas dizer que estava curada. “Deus a salvou”, confirmavam o milagre. E agora ela voltara a ser o que sempre tivera predestinada a ser: o que Deus quis que fosse.
Artigo da autoria de Ícaro Machado